“Thatcher, recorde-se, mandou afundar o Belgrano por muito menos – e estamos a falar de uma ilha do tamanho de uma pequena vila ucraniana. E por aqui? Quem se atreverá a dar a ordem para abater as aeronaves?”
A Europa é, muitas vezes, como aquele vizinho que só chama o canalizador quando a cozinha já está inundada. Fala, discute, promete, mas só reage quando o desastre é palpável. Em Copenhaga, o desastre não se fez anunciar com tanques nem mísseis, mas com algo quase ridículo: o zumbido discreto de drones sobrevoando infraestruturas militares e aeroportos. Foi nesse ambiente que os líderes da União Europeia se reuniram em cimeira informal — e se viram obrigados a admitir que a guerra já não é uma abstração distante, mas uma presença quotidiana. Mas já alguém o disse aos Europeus?
A primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, foi clara: não se trata de um ensaio, mas de uma guerra híbrida em curso. Drones, sabotagens, violações de espaço aéreo, ataques informáticos – nada disto é episódico, tudo isto é sistemático. “Estamos na situação mais perigosa desde a Segunda Guerra Mundial”, afirmou, com a gravidade de quem sabe que a frase não é apenas retórica para abrir telejornais.
Perante tal diagnóstico, a Europa decidiu inventar a sua nova expressão de marketing estratégico: a “drone wall”. Uma muralha tecnológica para proteger o espaço aéreo europeu, com sensores, radares e sistemas de interceção coordenados. Um símbolo, talvez até uma metáfora de identidade coletiva. Mas, como bem lembram os analistas, construir paredes é fácil no papel, difícil na realidade. A articulação de 27 sistemas nacionais, os custos astronómicos e a inevitável disputa sobre quem paga e quem comanda tornam o projeto mais complexo do que entusiasmante, mas necessário. O Financial Times notou, com ironia britânica, que “não basta erguer muros digitais – é preciso que alguém vigie o portão”.
O segundo tema explosivo da cimeira foi o dos ativos russos congelados. Há cerca de 140 mil milhões de euros parados em cofres. Usá-los para financiar a Ucrânia é uma tentação política irresistível: seria a vingança poética perfeita, Moscovo a pagar pela guerra que iniciou. Mas a poesia encontra a prosa do direito internacional e a desconfiança dos mercados. O The Economist advertiu que tocar em ativos privados ou estatais sem condenação formal mina a confiança nos mercados globais. O El País lembrou que no G7 já se levantaram dúvidas sobre o precedente jurídico. O Der Spiegel descreveu o receio em Berlim: ao abrir esta porta, a UE pode corroer a credibilidade financeira que levou décadas a consolidar.
A imprensa francesa foi ainda mais cáustica. O Le Monde escreveu que a Rússia está “a testar a capacidade das democracias de responder a ameaças híbridas sem perder a sua própria alma”. Ou seja: como resistir sem trair os princípios que definem a ordem liberal europeia. É aqui que reside o verdadeiro dilema: entre a urgência de reagir e a prudência de respeitar as regras. Entre mostrar músculo e não perder legitimidade. É uma escolha política que, em tempos de líderes frágeis, desacreditados e atolados nos seus próprios problemas internos, com os extremos sempre à espreita, se torna ainda mais difícil. Thatcher, recorde-se, mandou afundar o Belgrano por muito menos – e estamos a falar de uma ilha do tamanho de uma pequena vila ucraniana. E por aqui? Quem se atreverá a dar a ordem para abater as aeronaves?
No meio deste debate, a cimeira acabou por revelar algo maior: a lenta mas inevitável deslocação do centro de gravidade da defesa europeia. A NATO continua a ser o guarda-chuva essencial, mas a Europa percebe que, se não construir os seus próprios mecanismos, arrisca ser um inquilino sem chave de casa. A guerra na Ucrânia foi o choque inicial; os drones em Copenhaga foram o lembrete de que não basta apoiar Kiev, é preciso proteger Lisboa, Varsóvia, Paris ou Berlim.
E Portugal? Portugal, como sempre, assiste da sua confortável distância, certo de que a tempestade está sempre mais longe do que realmente está. Mas a ilusão de segurança geográfica pode ser enganadora. Uma Europa que se reestrutura em torno da segurança aérea e da guerra híbrida não permitirá sócios passivos. Quem ficar à margem arrisca não apenas irrelevância militar, mas também perda de influência política e de acesso a decisões estratégicas. A muralha de drones não é apenas uma barreira contra Moscovo, é também um teste à pertença plena ao projeto europeu.
No balanço, esta cimeira em Copenhaga foi menos sobre drones do que sobre escolhas. Escolher se a Europa continua a adiar a sua defesa comum ou se assume, finalmente, que autonomia estratégica é mais do que uma frase bonita em comunicados oficiais. Escolher se usa ativos russos congelados de forma ousada, correndo riscos jurídicos, ou se recua para preservar o dogma da legalidade intocável. Escolher, em suma, entre ação e hesitação.
No fim, aquele zumbido discreto no céu pode vir a ser recordado como o som do despertar europeu. Ou, se nada mudar, apenas como mais um ruído a desaparecer no ar — como tantos outros antes dele.