Recentemente a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) publicou uma série de atualizações em seu guideline de diabetes, que viemos trazendo nas últimas semanas.
Um dos grandes destaques foi a atualização do guideline do tratamento do diabetes mellitus tipo 2 (DM2), convergindo mais com as diretrizes da American Diabetes Association (ADA) ao sugerir mais enfaticamente a estratificação de risco cardiovascular para a melhor definição terapêutica, a fim de estimular o uso de medicações com comprovados benefícios em desfechos cardiovasculares nas populações de maior risco.
Da mesma forma que o guideline da SBD sobre Doença Renal do Diabetes sugere a estratificação do risco renal e terapias como inibidores de SGLT-2 ou agonistas de GLP-1 em situações específicas de forma independente do controle glicêmico, o passo inicial recomendado pela diretriz foi de fato a estratificação do risco cardiovascular.
Vamos analisar as principais mudanças trazidas no guideline 2024 da SBD sobre o tratamento do DM2.
Estratificação do risco cardiovascular e hemoglobina glicada inicial: bases para a decisão terapêutica
Como mencionado anteriormente, uma das principais inovações da diretriz é a estratificação de risco cardiovascular, que orienta a escolha do tratamento inicial. Essa abordagem reconhece o impacto significativo do DM2 como fator de risco independente para complicações macrovasculares e utiliza critérios clínicos e biomarcadores para categorizar os pacientes em quatro níveis de risco: baixo, intermediário, alto e muito alto. Vamos relembrar a estratificação de risco sugerida pela SBD:
Risco Baixo/intermediário
– Homens (< 50 anos de idade) ou mulheres (< 56 anos de idade), com menos de dez anos de diagnóstico de DM2, sem fatores de risco, sem biomarcadores de alto risco, sem doença CV subclínica conhecida, sem doença microvascular conhecida e sem história de eventos CV.
Alto risco: Presença de até dois fatores de risco (dentre qualquer categoria):
– Homens > 50 anos, Mulher > 56 anos, Diagnóstico de DM2 > 10 anos, Síndrome metabólica, Hipertensão arterial, tabagismo, LDL > 190 mg/dl, História familiar de DAC prematura;
PRESENÇA DE DAC SUBCLÍNICA OU LESÃO DE ÓRGÃO ALVO: TFG 30-59 ml/min/1,73 m² Albuminúria 30-300 mg/g, etinopatia não proliferativa, Neuropatia autonômica CV inicial, Escore de cálcio coronário > 10 Agatston, Placa de carótida > 1,5 mm, Placa coronária com estenose arterial até 50%, Índice tornozelo-braquial < 0,9, Aneurisma de aorta abdominal
BIOMARCADORES DE ALTO RISCO: NT proBNP > 125 pg/ml ou BNP > 35 pg/ml, TnT-US > p99
Muito alto risco
Doença cardiovascular estabelecida: Síndrome coronariana aguda/ IAM; Doença coronariana crônica; AVC isquêmico; Ataque isquêmico transitório; Revascularização arterial; DAOP (doença arterial obstrutiva periférica); Amputação
TFG < 30 ml/min/1,73 m2; Albuminúria > 300 mg/g; TFG < 45 ml/min/1,73 m² com albuminúria > 30-300 mg/g; Retinopatia proliferativa; Neuropatia autonômica CV avançada; estenose arterial > 50%
Presença de 3 ou mais fatores de alto risco ou hipercolesterolemia familiar
Recomendações
Primeiro passo: Avaliar o risco cardiovascular
Se ALTO risco ou MUITO ALTO risco CV: iSGLT-2 ou AR GLP-1 (independentemente do controle glicêmico)
Segundo passo: Nos demais indivíduos, avaliar o nível da HbA1c (Se Obesidade: Considerar AR GLP-1 ou duais GIP/GLP-1):
1) HbA1c 6,5 a 7,5%
– Iniciar Metformina; Se Hba1c acima da meta: terapia dupla (associar outro antidiabético)
2) HbA1c 7,5 a 9,0%
– Iniciar terapia dupla; Se Hba1c acima da meta: terapia tripla
3) HbA1c > 9,0% (sem sintomas)
– Terapia dupla; deve ser considerada terapia tripla
– Intensificação: Se HbA1c ainda acima do alvo, terapia tripla RECOMENDADA
– Sem melhora: quádrupla; após, considerar terapia baseada em insulina (TBI) ou co-formulações insulina/aGLP-1
4) HbA1c > 9,0% (com sintomas)
– TBI (terapia baseada em insulina);
– Considerar basal/aGLP-1
– Se cetoacidose, cirurgia, suspeita de DM1, hiperglicemia grave, preferir insulina basal ou basal bolus
– Quando estável/melhora, considerar “descalonamento” para terapia dupla ou tripla
*Observação: Esta parte do guideline não inclui as recomendações recentes da sessão sobre Doença Renal do Diabetes (DRD), mas vale a pena lembrar também da indicação específica dos inibidores de SGLT-2 para esses pacientes e também da inclusão da semaglutida, de forma independente do controle glicêmico, para aqueles com albuminúria > 100 mg/g e TFG > 25 ml/min.
Metas
O controle glicêmico no DM2 deve ser ajustado de acordo com as características do paciente:
- Metas gerais: HbA1c <7% para a maioria dos pacientes.
- Metas individualizadas:
- HbA1c entre 7–8% em idosos frágeis ou com risco elevado de hipoglicemia.
- Valores mais estritos (<6,5%) para pacientes jovens sem comorbidades.
Abordagens não farmacológicas
Controle do peso
É recomendado realizar intervenções estruturadas, como dietas hipocalóricas e programas de manutenção do peso, promovem remissão do diabetes em até 36% dos casos, como evidenciado no estudo DIRECT.
Atividade física
Recomenda-se a realização de exercícios aeróbicos estruturados, com mais de 150 minutos semanais, que podem reduzir a HbA1c em até 0,89%.
Outras intervenções
Redução do tempo sentado, cessação do tabagismo e melhora na qualidade do sono também foram associadas à menor incidência de eventos cardiovasculares e progressão do diabetes
Conclusões
A abordagem da SBD destaca o papel central da estratificação de risco cardiovascular na decisão terapêutica, ficando mais alinhada aos guidelines internacionais de tratamento do diabetes. Apesar do alto custo relacionado ao tratamento, sobretudo no uso de agonistas de GLP-1, tais medicações são capazes de melhorar desfechos nesse grupo específico. Uma grande barreira é a implementação do uso dessas medicações na prática, sobretudo no SUS. De toda forma, o papel da diretriz é sintetizar as melhores evidências para que possamos oferecer aos pacientes os melhores tratamentos disponíveis.