Abril de 2023 marcou o fecho da última central nuclear de um país que chegou a esta na vanguarda do setor. Agora olha-se para trás e levantam-se dúvidas
Um tsunami no Japão originou um tremor de terra na Alemanha que, mais de 13 anos depois, continua a provocar ondas de choque no país. Na sombra do desastre de Fukushima, em março de 2011, a chancelaria de Angela Merkel em coligação com os liberais do FDP tomou a decisão de acabar com a produção de energia nuclear, ordenando o encerramento faseado de todos os reatores do país.
A Alemanha gozava então de uma posição privilegiada no contexto europeu e mundial – a economia era sólida, o seu parque industrial estava longe da situação débil em que hoje se encontra, as empresas alemãs ainda davam cartas dentro e fora do continente e, energeticamente, o país era, em grande medida, movido a gás natural importado da Rússia. Mas mais de uma década depois, o paradigma alemão mudou radicalmente – a economia está em recessão há dois anos e, com a invasão em larga escala da Ucrânia, fechou-se a torneira russa da qual a Alemanha dependia.
O novo paradigma não travou a desnuclearização do país. Cerca de um ano depois da invasão da Ucrânia, em abril de 2023, a Alemanha assistiu ao fecho da última central nuclear ainda a operar – uma fonte que, no ano anterior, gerou entre 4 a 6% do total de eletricidade produzida pelo país. Na despedida, o ministro da Economia e do Ambiente, Robert Habeck, do partido minoritário Os Verdes, garantiu que “a segurança do abastecimento energético na Alemanha está e continua a estar garantida” e “permanece muito elevada” em comparação com o resto do mundo, lembrando que a decisão foi tomada em primeira instância pelos conservadores da CDU e os liberais do FDP.
A mensagem foi recebida com muito ceticismo, a começar pelo partido conservador de Friedrich Merz, o homem em rota para se tornar o próximo chanceler da Alemanha após o colapso da chancelaria Scholz esta segunda-feira e que – não é segredo – considera que a antecessora cometeu um erro grave ao ordenar o fim do nuclear. “Isto marca um dia negro para a proteção climática na Alemanha”, disse então o vice-líder da bancada parlamentar da CDU. “Este ministro d’Os Verdes”, acusou Jens Spahn, “prefere deixar centrais elétricas a carvão a funcionar em vez de centrais nucleares neutras para o clima” e o Governo Scholz transformou-se numa “coligação do carvão”.
Num país com ambiciosas metas climáticas e que precisa desesperadamente de reinventar o seu modelo económico obsoleto, onde os preços da eletricidade têm contribuído, em parte, para um êxodo de empresas alemãs para os EUA, Patrick Schröder, analista da Chatham House, não tem dúvidas: com eleições à porta na Alemanha, a 23 de fevereiro, “o nuclear é uma das grandes questões em aberto”.
Adeus carvão, olá hidrogénio
Na semana em que a última central nuclear alemã começou a ser desmantelada, há um ano e meio, uma sondagem do instituto YouGov mostrava que apenas um quarto dos alemães estava de acordo com a decisão tomada por Angela Merkel, com um terço a defender uma extensão temporária da produção de energia nuclear e outro terço a defender que o fim do nuclear deveria ser adiado por tempo indefinido. As dúvidas, mostrava o mesmo inquérito, estendiam-se ao eleitorado d’Os Verdes, com apenas pouco mais de metade (56%) a apoiar o encerramento imediato dos derradeiros reatores nucleares, quando, apesar do grande investimento em energias renováveis, a Alemanha ainda gera cerca de um terço da sua eletricidade a partir do carvão.
Nada indica que os resultados dessa sondagem tenham ficado datados, o que deixa a descoberto as possíveis fricções que a próxima coligação alemã enfrenta. A dois meses da ida às urnas, os inquéritos de opinião antecipam que a CDU de Merz vai vencer com cerca de 32% dos votos, seguida respetivamente da AfD de extrema-direita (18%), do SPD de Scholz (16%) e d’Os Verdes (13%) – e dado que os liberais do FDP (4%), os outros grandes defensores do nuclear, não deverão conseguir eleger deputados ao Bundestag, e que a CDU exclui à partida governar com a extrema-direita, resta uma de três hipóteses: coligar-se só com o SPD, coligar-se só com Os Verdes ou coligar-se com ambos.
“Uma coligação CDU-SPD é uma possibilidade, isso aconteceu antes de 2020, quando Merkel era chanceler e Scholz o vice-chanceler, mas não resultou assim tão bem”, refere Schröder. Já uma coligação CDU-Verdes “seria uma coisa nova” e “já há exemplos ao nível subnacional, em alguns parlamentos estatais, onde os dois partidos têm conseguido trabalhar muito bem em conjunto”. Ainda assim, restam muitas dúvidas sobre o que Berlim vai fazer após fevereiro ao leme de Merz.
“Uma questão interessante é se a CDU vai avançar com a transição energética nos moldes que Os Verdes querem”, adianta o analista da Chatham House especializado em questões energéticas e climáticas. “Há umas semanas houve um fórum em Berlim que teve um painel com o vice-líder da CDU e com um membro d’Os Verdes a falarem juntos sobre como alimentar esta transição energética, e parecia haver bastantes pontos de acordo… É provável que continuem a trabalhar sobre isso, estão alinhados quanto à integração do mercado, quanto à rede elétrica, quanto a novas regulações para favorecer a produção doméstica [de eletricidade] – outra área de competição com a China. Mas há muitas preocupações quanto a tudo isto.”
Quando Scholz despediu o seu ministro das Finanças, o liberal Christian Lindner, em novembro, abrindo o caminho à queda da coligação “semáforo”, Habeck fez questão de garantir que o país vai continuar a seguir as políticas energéticas implementadas neste mandato, que passam por adaptar as centrais elétricas do país ao hidrogénio, para colmatar o défice de capacidade resultante do abandono progressivo da energia produzida a partir de carvão ao longo da próxima década – e as emissões a ela associadas, cuja responsabilidade o vice-chanceler atribui aos sucessivos governos liderados pela CDU.
“As conversões das centrais elétricas e as novas infraestruturas da rede elétrica são elementares para este país”, disse Habeck numa conferência sobre energia organizada há um mês pela agência energética Dena. “As comunidades, os vários intervenientes, os governos estatais estão todos à espera disso.” Mas também não é certo até que ponto a próxima coligação encabeçada pelos conservadores vai continuar empenhada na transição para as energias renováveis, numa altura em que o país tem como objetivo delineado gerar 80% da eletricidade a partir delas até 2030 – qualquer que seja a natureza da futura coligação.
“O alargamento das energias renováveis está em curso, a percentagem de consumo de energias renováveis é muito mais elevada agora e temos até 2030 para reduzir o custo da energia para a indústria, porque a nossa indústria é muito maior do que a de outros países e necessita de muita eletricidade e gás”, refere à CNN Thomas Obst, do Instituto para a Economia Alemã (IW). “Só que, atualmente, ainda se está a discutir o que fazer quanto às tarifas da rede elétrica, por exemplo”, um ano após a chancelaria ter aprovado subsídios de 5,5 mil milhões de euros para colmatar os aumentos de preços.
Adeus IRA, olá guerra comercial
Com o fim do fornecimento de gás russo à Alemanha, refere o economista de Colónia, “o atual governo tentou substituir esse gás por gás natural liquefeito (GNL), o que melhorou a situação no curto prazo e levou a uma descida dos preços da eletricidade”. O preço do gás no mercado europeu também caiu, mas a realidade é que “continua a ser cinco a seis vezes superior ao dos Estados Unidos”, e isso é problemático dado o crescente protecionismo do aliado transatlântico, um caminho iniciado por Joe Biden na forma do Inflation Reduction Act (IRA) e que, com Donald Trump prestes a regressar à Casa Branca, deverá manter-se, ainda que noutros moldes.
A legislação aprovada pela administração Biden foi criticada por, nas palavras de Thomas Obst, ser “uma política industrial vertical muito intervencionista”, que apresenta “uma regulamentação mais atrativa para os mercados do que os fundos do Next Generation EU”, mas a vertente “verde” foi aplaudida pelos parceiros europeus, por apostar na transição energética no contexto do combate às alterações climáticas, abrindo uma folga para a Alemanha usar o IRA a seu favor.
“Temos pontos muito fortes que ainda podemos utilizar, como uma indústria desenvolvida e produtos muito especializados”, refere o economista do IW. “As empresas alemãs beneficiaram efetivamente do IRA, as exportações aumentaram desde 2020, e se os EUA desenvolverem a indústria verde, as nossas empresas também poderão ganhar com isso. Ao abrigo do IRA, os EUA estão a tentar construir baterias para veículos elétricos e a tentar apostar no hidrogénio – o problema é que não é claro se o plano vai funcionar.”
Isto é ainda mais verdade dada a vitória de Trump, que no próximo mandato deverá acabar com a legislação implementada por Biden, abandonar as pretensões de transição energética e aplicar tarifas a bens importados da UE – quando os EUA são o maior mercado de destino das exportações alemãs. “O IRA é menos preocupante do que as tarifas de Trump”, assume Obst. “As empresas alemãs estão preocupadas – mas, para já, ainda não estão em pânico.”
Adeus Scholz (?), olá Merz
Com uma guerra comercial no horizonte, por agora os analistas debruçam-se sobre as equações de governo após as eleições e o que podem significar em termos de políticas energéticas e climáticas. CDU e SPD estão de acordo quanto aos objetivos gerais já delineados, como tarifas mais baixas na rede elétrica, a rápida expansão da rede de hidrogénio e mais investimento nas infraestruturas enfraquecidas do país, como forma de reavivar uma economia estagnada. Mas há várias áreas-chave em que os potenciais parceiros de coligação não se entendem.
Se, para a barricada de Merz, o preço do carbono é o “instrumento-chave” para alcançar a neutralidade carbónica até 2045, sob o argumento de que é “o mais eficiente, económica e ecologicamente”, para os sociais-democratas a CDU tem vistas curtas, por se focar quase exclusivamente num mecanismo que, por si só, não basta para reduzir as emissões poluentes da Alemanha.
Quanto à indústria automóvel, que mesmo em crise continua a ser o grande motor da economia alemã, o partido de Scholz não tem dúvidas de que “o futuro desta nação automóvel é a mobilidade elétrica”, quando a CDU está num combate aberto contra os planos da UE para o abandono faseado dos veículos movidos a combustíveis fósseis – “proibir motores de combustão não é o caminho”, o que é preciso é “abertura tecnológica”, defendem os conservadores.
Como refere o Politico, que nomeia Friedrich Merz como o “disruptor” da turma política que vai marcar 2025, o líder conservador “pode não ser um cético das alterações climáticas, mas acredita que a indústria alemã precisa de ser libertada do que considera ser uma regulação verde excessiva, muita dela aprovada pelos governos de coligação que Merkel liderou”. E sendo um “apaixonado pela proteção da lendária indústria automóvel do país”, está apostado, precisamente, na “grande questão” que é o nuclear para garantir a independência energética da Alemanha no longo prazo.
Com a CDU a namorar a possibilidade de retomar a atividade das centrais encerradas, o SPD fala numa política demasiado dispendiosa que vai contra a ideologia dos próprios conservadores – segundo a qual devem ser promovidas tecnologias mais rentáveis, em vez de tecnologias especificamente mais amigas do clima – e é muito improvável que Os Verdes alinhem com essa estratégia.
“Em discussões recentes, Merz disse ser a favor do nuclear, mas falou especificamente da fusão nuclear, uma tecnologia que ainda está em fase de investigação”, adianta Patrick Schröder, da Chatham House. “Não me parece uma má opção, mas não poderá ser aplicada tão cedo. E, portanto, qual será a solução [do próximo governo] quanto à descarbonização, dado que a meta da neutralidade carbónica da Alemanha é 2045?”