[RESUMO] Necessidade de vender livros por vezes faz o meio editorial embarcar em uma alucinada fabricação de grandes autores a todo instante, abarrotando livrarias de obras “imperdíveis” escritas por “futuros Nobel de Literatura”. Nessa avalanche, leitores e críticos ficam perdidos, e a leitura passa de experiência artística a simples consumo pouco criterioso.
Geralmente, escritores alcançam o reconhecimento dos leitores e dos seus pares depois de longa jornada. Há, porém, exceções. Hoje em dia, parece-me que o mercado editorial está especialmente empenhado em transformar a exceção em regra, na medida em que anuncia o surgimento de um novo grande autor a cada momento. Para tanto, não basta, é claro, apenas a publicação de uma obra inédita.
É preciso investir no seu lançamento, até transformá-lo num evento ruidoso que chame a atenção para a figura do autor destinado a virar rapidamente uma celebridade literária (pode ser que ele já seja celebridade em outra área).
A voz do escritor vai, assim, ganhando relevância e se tornando incontornável na discussão da produção literária atual. Será que a famosa teoria da morte do autor, de Roland Barthes, já foi descartada? Metaforicamente, segundo o crítico francês, o escritor morre, para dar espaço à interpretação do leitor.
Pergunto-me se a relação cada vez mais promíscua entre o mercado e os novos autores não acabará ofuscando os valores estéticos, tais como eram entendidos até recentemente, quando os padrões de excelência literária vinham de, por exemplo, Virginia Woolf e Guimarães Rosa. A situação é complexa, e a sua análise, por incrível que pareça, ainda engatinha.
Em “O que Resta”, Lorenzo Mammì compara a relação entre a arte e a indústria cultural àquela da dupla Píramos e Tisbe, cujo destino foi narrado num mito romano. Ambos viviam em casas vizinhas e namoravam pela fresta de uma parede, já que suas famílias não aprovavam o romance.
Quando finalmente decidiram se encontrar cara a cara, aconteceu uma tragédia e nenhum dos dois sobreviveu: “Condenada a uma separação semelhante, a arte atual conversa com seu público através das pequenas interrupções que ela consegue escavar no fluxo constante de informações. Não vê quem a olha, tampouco pode mostrar-se plenamente. No entanto, se a parede caísse, provavelmente já não seria capaz de se nortear sozinha. A arte precisa da indústria cultural, embora a negue a cada gesto; a indústria cultural precisa da arte, como de um sustentáculo subterrâneo que todavia se esforça em encobrir, preenchendo cada buraco da superfície. Dessa negação recíproca se desprende algo como a sombra de um valor, o ectoplasma de uma verdade. É pouco, mas é o que nos resta”.
O fato é que “a negação recíproca” parece dar lugar hoje a uma “aceitação recíproca”, a qual, sem a necessidade de encobrir mais nada, transforma a arte em produto de mercado, com o consentimento de todos os envolvidos.
É preciso lançar ininterruptamente novidades na área das letras, e esse processo não permite que o leitor comum tenha tempo para digerir (ainda que haja muitos livros de fácil digestão) o que leu. A leitura não se transforma, portanto, em experiência, e consequentemente o leitor não consegue alcançar uma compreensão das possibilidades expressivas da literatura.
Os best-sellers mantêm o mercado aquecido, o que é bom, mas é preciso destacar que as editoras estão cada vez mais interessadas em satisfazer sobretudo a clientela que os consome. Todo tipo de leitura é importante para a formação do leitor, porém consumir um só tipo de literatura acabará sendo nocivo a ele, impedindo-o de alargar a sua experiência estética.
Em “Textos Críticos”, o consagrado crítico Augusto Meyer fala do “leitor ingênuo”, ou seja, aquele que “procura o reflexo dos seus sentimentos mais imediatos, identificando-se logo com o protagonista ou herói do romance”, e esse seria o leitor de best-sellers.
Embora, como afirma Meyer, isso se dê “mais ou menos com qualquer leitor” —afinal, “nós nos lemos através dos livros”—, no leitor ingênuo “essa lei dos reflexos toma a forma de um desinteresse pelo livro como obra de arte. Pouco importa a impressão literária, o sabor do estilo…”.
Hoje, no nosso país, há livros para todos os tipos de “leitores ingênuos”. Alguns deles pertencem a clubes de “fãs” de determinados autores celebridades, como Elena Ferrante. Às vezes, é o tema que os atrai e os mantêm unidos em torno de certas obras devotadas a questões contemporâneas candentes.
Tais leitores parecem estar sempre ávidos por novidades, desde que elas correspondam às suas expectativas. O estilo deve ser, de preferência, aquele que não “obscureça” a mensagem. Para os leitores fãs, qualquer pequena consideração crítica negativa sobre as obras que cultuam é um ataque pessoal ao escritor e ao grupo.
A situação da crítica literária, neste cenário, é no mínimo desafiadora. Em primeiro lugar, afirmam editores e autores que a crítica morreu. O fato é que o crítico contemporâneo não tem condições de avaliar uma avalanche de livros colocados no mercado cotidianamente e vendidos como obras de futuros Nobel de Literatura.
Lembra Augusto Meyer das ciladas que espreitam o juízo crítico, em todas as épocas: “O teatro de Shakespeare foi, durante muito tempo, considerado uma grosseira farsa pelos admiradores de ‘Henriade’ [poema épico de Voltaire]. Rivarol polia as arestas do anguloso Dante, ao sabor dos contemporâneos”.
Desse cenário, surge uma questão importante que diz respeito tanto ao crítico como aos escolhidos para o papel de escritores geniais (premiados ao não). Recorrerei a um texto de ficção, para expressá-la.
No conto “Uma Questão de Imaginação”, de Hans Christian Andersen, uma velha contadora de histórias aconselha um escritor frustrado a se tornar um crítico: “E o rapaz seguiu o conselho da mulher sábia, tornando-se um feroz crítico literário. Já que não era capaz de escrever, contentava-se em destruir a reputação literária dos que se atreviam a fazê-lo. E eram os poetas os que mais sofriam com suas críticas ácidas e ferinas”.
Segundo o narrador do conto, “Foi a velha mulher sábia quem me contou essa história, e ela tem imaginação para dar e vender. E bem que ela gostaria de dá-la ou de vendê-la, mas não acha quem queira recebê-la, e muito menos quem esteja interessado em comprá-la”.
A pobre sábia, embora grande narradora, não possuía um editor ou um grupo de amigos importantes que pudessem fazê-la chegar rapidamente às estantes das livrarias como, talvez, um potencial best-seller.
Se nesta breve reflexão não me detive em escritores nacionais, situando-os no campo literário, é porque acredito que, como escreveu Georges Minois na introdução de “História do Riso e do Escárnio”, estabelecer uma bibliografia em meio ao alto número de publicações seria propor ao leitor uma lista necessariamente seletiva e, portanto, diria, injusta, se não maliciosa.