Trabalhador romeno limpava a mata no terreno da Força Aérea quando foi surpreendido pela detonação de um engenho explosivo. O colega Walter morreu
Walter Crainic era romeno, tinha 40 anos e morreu no seguimento de uma explosão enquanto realizava trabalhos de limpeza no Campo de Tiro de Alcochete, no dia 31 de março. O inesperado aconteceu quando estava a cortar um pinheiro de grandes dimensões e, de repente, acabou projetado por uma explosão. Escassos metros à esquerda seguia Vasile Paul, 45 anos, colega de trabalho. Teve sorte, mas a fortuna não o livrou de uma fratura exposta na tíbia, várias queimaduras na parte direita do corpo e uma incapacidade de locomoção para a vida, que o impede de voltar ao trabalho.
Vasile explica, em entrevista exclusiva à CNN Portugal, que chegou a Portugal em 2004, realçando que sempre esteve legal – apesar de ainda não ter requerido a nacionalidade portuguesa -, trouxe a mulher, tem dois filhos de 22 e 14 anos e agora, passados mais de 20 anos, a vida começava a endireitar-se, desabafa. Começou numa vacaria, mas aquilo “era uma prisão”, sem Natal, Páscoa ou férias de verão. Passados uns anos encontrou o emprego de sonho, que lhe permitia estar no campo, e por lá ficou, na limpeza da floresta, até à fatídica tarde de março.
“Estávamos lá cinco. Trabalhamos para uma empresa de limpeza e corte de mato e há dois anos que estávamos a trabalhar no Campo de Tiro de Alcochete. Quando chegávamos, entrávamos, porque tínhamos os cartões e as indicações da zona para onde ir. Andávamos sozinhos, não tínhamos ninguém que viesse ou estivesse no local connosco. Os militares vinham apenas um dia por semana, quando acabávamos de cortar para ver como estava a correr”, conta, sublinhando que “não havia qualquer supervisão”
De acordo com a vítima, a cada manhã, quando a equipa de limpeza chegava ao Campo de Tiro de Alcochete – gerido pela Força Aérea Portuguesa – tinham fixados no portão “um mapa com as zonas para limpar identificadas”. “Mas nunca iam ao local connosco”, explica, adiantando que, “às vezes, lá vinham dois militares para ver como estava o trabalho e mais nada, mas acontecia duas ou três vezes por semana no máximo”.
“Nunca” tiveram um briefing sobre segurança antes dos trabalhos no Campo de Tiro de Alcochete, nem as zonas do Campo de Tiro estavam identificadas. “Não, é mato e mato grande, quem sabe o que lá poderá estar no meio da vegetação”, indica Vasile.
Os cinco trabalhadores de limpeza florestal não eram os únicos civis subcontratados no Campo de Tiro. Vasile lembra que “havia ainda o pessoal dos tratores, o pessoal da cortiça, o pessoal que cortava eucaliptos, estava cheio de gente”. “Como poderia saber que tinham feito exercícios militares naquela zona? Mandaram cinco pessoas para ali sem analisar o terreno”, lamenta, lembrando que era recorrente “ouvirem os aviões e os barulhos das bombas ao longe”.
Vasile assegura que desconhecia os riscos ou a necessidade de cuidados acrescidos inerentes à prática daquele trabalho naquele terreno. “Ninguém nos avisou e já estávamos a cortar há mais de duas semanas naquele local”, garante. Este não era, aliás, um serviço que a Força Aérea contratava esporadicamente. A vítima garante que, há mais de dois anos, todos os dias pelo menos uma equipa da empresa com que ainda tem contrato laboral estava no perímetro militar localizado em Samora Correia.
“Havia duas equipas da empresa de limpeza e íamos alternando, se alguém faltasse ou tivesse um trabalho noutro sítio. Todos os dias lá estávamos, cinco pessoas a trabalhar”, conta.
Vasile não conseque esquecer a morte de Walter. Diz que viu e ouviu tudo.
“Nós estávamos lá, eu mais o colega que morreu estávamos a derrubar árvores e os outros três vinham atrás. Tínhamos acabado de almoçar. Era mais ou menos 13:15 ou 13:20. Eu e o Walter andámos para a frente para derrubar, ele ia do lado direito, eu do lado esquerdo. De repente, ele começou a cortar e só ouvi BUFFF. Devem ter passado cinco minutos desde que tínhamos começado a trabalhar não mais. Acordei caído. Não fiquei em mim durante dez ou quinze minutos, porque o barulho da bomba quase me furou os tímpanos. Ouvia atrás de mim o rapaz que morreu. Estava deitado, quis levantar-me e não conseguia, pensei que da cintura para baixo estava tudo partido. Tentei rastejar para o ir ajudar, mas não consegui. Pensei mesmo que estava tudo partido, depois só via sangue à minha volta. Voltei a cabeça para ver como estava o meu colega – não tinha as duas pernas, não tinha mão e estava a arder ao perto dele. Aguentou durante três ou quatro minutos e morreu, ouviu-o a morrer“, recorda.
O cidadão romeno garante que não conseguiu perceber o que espoletou a explosão, lembra que o pinheiro que Walter estava a cortar naquele instante era “muito grande e tinha muitos ramos grossos, pode ter sido quando um deles embateu no solo depois de ter sido cortado”.
Passou pelo menos uma hora até chegar a assistência médica, lembra. Vasile diz que nesse tempo foram os três colegas que seguiam atrás que tentaram ajudar o melhor que conseguiram. “Ouviram o barulho, porque foi muito alto e vieram ter connosco. O fogo estava quase a chegar até mim, dois deles agarraram-me, levaram-me para longe das chamas e lá fiquei deitado até chegar ajuda médica.”
O então ferido grave acredita que o enfermeiro de serviço no Campo de Tiro de Alcochete poderia ter chegado ao local muito mais cedo, não fosse a “complicada organização” de quem gere o Campo de Tiro. “Não podia chegar lá um militar mais depressa, porque não sabiam em que zona estávamos”, conta Vasile, acrescentando que “andaram por todo o lado” à procura das vítimas.
“Se soubessem de nós, tinham vindo logo ter ao sítio certo. Foi o meu colega quem teve de pegar na carrinha de trabalho e ir ter com os militares que andavam a bater o terreno e a gritar por nós. Ninguém sabia onde estávamos”, descreve.
Vasile diz que se recorda de ver o helicóptero no INEM no local, mas realça que não sabe porque não foi helitransportado. “Quando os bombeiros chegaram tiraram-me a roupa, deram-me uma injeção e levaram-me logo para a ambulância, mas eu não aguentava, estava a doer-me mesmo muito e foi então que me deram uma segunda injeção, aí comecei a perder a consciência, depois acordei no hospital.”
Passados quase quatro meses, Vasile ainda recorda o barulho que “levou três ou quatro semanas a desaparecer”, o barulho da explosão. Também não conseguiu esquecer “as imagens do rapaz ali ao lado todo queimado”. “Ainda hoje as vejo. Tenho de tomar um comprimido para dormir, porque senão estou a noite inteira a ter pesadelos e a acordar sobressaltado. Acordo todo transpirado. Parece que estão sempre a rebentar bombas, sempre a ouvir aquele barulho.”
Vasile acabou por ser operado devido à “fratura exposta na região tibiotársica da perna direita e perfuração do joelho direito”, como se pode ler no relatório médico. O romeno tem consciência e já foi informado que não vai ficar tudo bem, mas a recuperação “está a correr aparentemente bem” e isso é o que vai determinar o nível de incapacidade com que ficará. Contudo, por melhor que corra, o médico deu-lhe já uma certeza: “O trabalho que fazia já não vou conseguir fazê-lo mais.”
“A minha vida foi no campo. Gostava deste trabalho. Agora não posso dobrar a perna nem fazer esforços. Assim é complicado, estou a receber só 600 euros do seguro e tenho uma renda de 400, um carro para pagar e dois filhos, com 22 e 14 anos”, lamenta.
Apesar do que aconteceu não pensa regressar à Roménia. “Não, vou ficar aqui, porque metade da minha vida está aqui; cheguei em 2004, com 21 anos, e aqui fiquei.” Mas lamenta ter sido esquecido pelo país que se tornou a sua casa. “Sinto-me esquecido e ignorado pelo Estado português, porque não foi um dia ou dois só, foram mais de 20 anos de trabalho com tudo legal e como deve ser.”
“O acidente que aconteceu não foi por culpa nossa”, lembra Vasile Paul, sem esquecer o colega Walter Crainic.