“Desinflamar o intestino para emagrecer.” Essa frase tem se tornado comum entre influenciadoras e profissionais da saúde que, por meio das redes sociais, publicam vídeos associando o funcionamento intestinal à perda de peso, especialmente entre as mulheres. Mas será que essa relação realmente existe? Para o gastroenterologista e nutrólogo Hugo Mamede, do Hospital São Lucas da PUCRS, é preciso cautela na forma como isso vem sendo compartilhado:
— Essa relação é até inversa. Pessoas com inflamação real, diagnosticadas com doenças inflamatórias intestinais, tendem a perder peso, não a ganhar. O corpo entra em estado de “guerra”, gasta energia produzindo anticorpos, e o paciente pode ficar desnutrido.
O que pode dificultar o emagrecimento não é a inflamação em si, mas uma alimentação pobre em nutrientes, rica em industrializados e com impacto negativo sobre a microbiota intestinal (conhecida como flora intestinal), alerta o médico:
— O intestino tem, sim, papel central no processo de emagrecimento, mas não porque está inflamado ou precisa ser “desinflamado”. O que acontece é que ele produz hormônios fundamentais para a saciedade, como o GLP-1 e o GIP, e um intestino saudável influencia diretamente na nossa saciedade. Por isso, certos alimentos são mais satisfatórios do que outros e incluí-los na rotina proporciona maior índice de saciedade, o que é um passo importante no emagrecimento.
Contudo, a nutricionista Marina Berbigier, também doutora em gastroenterologia pela UFRGS, ressalta que pode haver, sim, uma relação entre inflamação intestinal e dificuldade para emagrecer, mas que é uma relação complexa e multifatorial.
— Existe um tipo de inflamação crônica de baixo grau que pode interferir no metabolismo, afetando, por exemplo, a glicose, a insulina e alguns hormônios de saciedade. No que diz respeito ao intestino, esse estado inflamatório pode estar relacionado a um desequilíbrio da microbiota intestinal, o que reduz a eficácia da nossa barreira de proteção intestinal, uma condição conhecida como intestino hiperpermeável. Esse cenário pode, de fato, influenciar o processo de perda de peso.
Ainda assim, a inflamação intestinal deve ser levada a sério. Marina alerta que a condição costuma estar associada a manifestações clínicas de doenças específicas – como a doença de Crohn, retocolite ulcerativa, neoplasias intestinais ou reações imunológicas a alérgenos alimentares em pessoas sensíveis, como o glúten em indivíduos com diagnóstico de doença celíaca.
Mamede comenta que, nessas condições, há uma resposta do sistema imunológico contra o próprio intestino, provocando lesões, sangramentos e até úlceras.
— Essas doenças são complexas e envolvem não só o intestino, mas também o eixo cérebro-intestino, impactando o bem-estar, o humor e o funcionamento intestinal. E, ao contrário do que se imagina, esses pacientes geralmente emagrecem, já que o corpo gasta mais energia para combater a inflamação — explica o médico.
Por isso, o diagnóstico de inflamação intestinal não deve ser banalizado ou feito de forma superficial, apenas com base em sintomas, como reforça Valesca Dall’Alba, professora da UFRGS e coordenadora do Ambulatório de Nutrição em Gastroenterologia e Hepatologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre:
— Muitas vezes, são necessários exames complementares de imagem, endoscópicos, e até biópsias intestinais a fim de se obter o diagnóstico correto que irá determinar a conduta mais assertiva no tratamento.
Um sofrimento cultural
Um dos sintomas intestinais mais comuns entre as mulheres é a constipação (a famosa prisão de ventre) e isso tem explicações físicas, comportamentais e até culturais, como explica Silvia Coelho Borges, especialista em Gastroenterologia e Endoscopia Digestiva do Hospital Moinhos de Vento:
— A educação das meninas tende a ser mais repressora em questões das funções fisiológicas. Seja por questões de “trancar” ou por receio de usar banheiros públicos, por exemplo, mas o ideal é sempre obedecer o comando de evacuar quando ele acontece, evitando segurar por períodos prolongados.
Marina destaca que é comum queixas de inchaços abdominais acompanhada de aumento de gases, muitas vezes associadas a alterações no padrão das evacuações. São sintomas ligados ao crescimento de casos de desordens funcionais, como a síndrome do intestino irritável.
Trata-se de uma condição multifatorial, com gatilhos que envolvem não apenas aspectos fisiológicos, mas também ao estresse e ansiedade. Por isso, ela é especialmente prevalente entre mulheres que precisam equilibrar carreira, família, vida social e autocuidado.
— Escuto com frequência em consultório: “Como posso ser uma mãe presente, uma amiga nota 10, evoluir na carreira, me hidratar, comer bem e ainda manter minha massa magra pensando na menopausa?” — relata Marina. — Quando a queixa é intestinal, ainda complementam: “E preciso ter tempo para ir ao banheiro com calma… impossível! Meu dia precisava ter 50 horas.” E, de fato, não estão erradas. Nossa saúde intestinal também depende de uma boa gestão do tempo.
Como perceber que o intestino não está bem?
Entre os sinais de alerta, a gastroenterologista Silvia destaca algumas mudanças persistentes na rotina intestinal. Como, por exemplo, uma pessoa que evacuava normalmente e passa a ficar dois ou três dias sem ir ao banheiro, percebe fezes endurecidas ou líquidas ou sempre acompanhadas de algum desconforto, podem indicar algo fora do normal.
— A presença de sangue nas fezes, perda de peso sem causa aparente ou sintomas noturnos que interrompam o sono, como acordar de madrugada com urgência para evacuar, também são sinais que não devem ser ignorados — alerta a médica. — Nesses casos, é fundamental procurar avaliação médica. E, durante a consulta, é importante relatar todos os medicamentos em uso, já que alterações no intestino também podem ser efeitos colaterais de algum deles.
Outro ponto de atenção é o impacto das dietas da moda. Segundo Mamede, regimes muito restritivos podem comprometer a flora intestinal e provocar efeitos adversos.
— Dietas que cortam grupos alimentares ou priorizam proteínas em excesso, por exemplo, podem agravar sintomas como cólicas, gases e desconforto abdominal. Fibras são essenciais para o bom funcionamento do intestino, e a alimentação precisa ser variada — orienta.
Ele também também chama atenção para o uso de medicamentos para emagrecimento:
— Não adianta só tomar remédio. A base continua sendo o funcionamento intestinal, que está ligado à alimentação e aos hábitos de vida.
Como melhorar a saúde intestinal?
Marina reforça que, para quem deseja cuidar da saúde intestinal com foco na prevenção de doenças e no emagrecimento, o ideal é começar pelo essencial: melhorar a alimentação.
Isso significa priorizar alimentos in natura e minimamente processados, que aumentam o consumo de fibras e nutrientes antioxidantes, e reduzir a ingestão de produtos ultraprocessados, cujos aditivos podem prejudicar o equilíbrio intestinal. E, claro, manter uma boa hidratação.
— O Guia Alimentar para a População Brasileira é uma excelente fonte de informação para quem quer começar ou se aprofundar nesse tema. Também é importante adotar um estilo de vida mais ativo. Hoje, consideramos que uma pessoa deixa de ser sedentária quando realiza pelo menos 150 minutos de atividade física por semana — recomenda.
Silvia também destaca a importância da colonoscopia a partir dos 45 a 50 anos, exame essencial para verificar a presença de pólipos, lesões, em sua maioria, benignas, mas que, se não forem removidas, podem evoluir para tumores malignos com o passar do tempo. Pessoas com histórico familiar de câncer de cólon (intestino grosso) em parentes de primeiro grau devem iniciar esse rastreamento ainda mais cedo.
— Mulheres que já tiveram diagnóstico de câncer de mama também devem investigar o intestino grosso, pois há uma possível associação entre o câncer de mama e o colorretal — alerta, reforçando a importância dos hábitos de vida saudáveis:
— Parafraseando uma colega e professora do Rio de Janeiro: a gente precisa descascar mais e desempacotar menos! Só essa dica já é um grande passo para melhorar a alimentação.