Crítica // Futuro futuro ★★★★
O “recomeçar, recomeçar sempre, recomeçar novamente…” que ecoa no clássico São Paulo S/A encontra parelha com um mantra ouvido em Futuro futuro, de David Pretto: “Tem algo errado” (encerrando alerta). Segmentada em zonas, a sociedade traz um aglomerado periférico, carente de água, luz e com comida racionada, condicionada a auxílio estatal.
Num roteiro caprichado (do diretor gaúcho), que reflete uma instabilidade, capaz de levar ao fim do mundo, desmemoriados equilibram sonhos e arsenais de memórias (apagadas, em muitos cidadãos) vinculados a um aparato tecnológico, o Oráculo. “Isso aí (o aparelho) destrói a vida das pessoas”, pontua o conservador Silvio (João Carlos Castanha), ao falar com o protagonista do longa, K (Zé Maria Pescador), sujeito à reabastecimento de imagens (num dispositivo de aprendizado mental, aos moldes do visto em Stanley Kubrick). Se sentindo oco (e deslocado), K transita entre cenários de ambição e de simplicidade, crescente de agonia e incertezas.
Vigilância policial, sobrevoos de drones, comércio fechado e limitações na interação emulam situações da pandemia e o Rio Grande do Sul à época do desastre recente. Sob ameaças (naturais) e inconstância na lida com pertencimento, K resiste, perplexo, ao prenúncio de uma hecatombe.
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Com inspirada fotografia de Leonardo Feliciano, o filme refina temas de filmes de Lars von Trier e de Michel Gondry, encerrando obra a ser valorizada pela montagem de Bruno Carboni. Transitando no mundo da riqueza, K investe numa rota à la ouro de tolo. Desencanto com a perfeição do mundo dos ricos vem como rendimento das investidas num mundo ilusório em que a tessitura (pretensamente, categórica e irretocável) de imagens geradas por IA se confirmam, na realidade, desordenadas e imprecisas. O presencial do dia a dia confirma seu valor inegociável, em Futuro futuro. Tudo sob misteriosa testemunha: um polvo que parece tão onisciente quanto misterioso.