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José Cruz/Agência Brasil)
No último dia 5 de novembro, Mariana relembrou os 10 anos do rompimento da barragem de Fundão. O desastre-crime matou 19 pessoas, provocou um aborto, destruiu comunidades tradicionais em Minas Gerais e devastou o Rio Doce até a foz, no Espírito Santo. Aqui, do epicentro do crime das mineradoras Samarco, Vale e BHP, considerado o pior desastre socioambiental da história do país, vemos esta década de forma ambígua e amarga.
De um lado, as comunidades atingidas conseguiram – e conseguem – vitórias inegáveis, graças a uma mobilização incansável ainda que sem direito a integrar as mesas decisórias da reparação desde 2015. Entre essas conquistas estão o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI), em 2016, e a promessa de melhores condições de saúde com a construção de um hospital universitário em Mariana, neste ano. Na última sexta-feira, 14, a anglo-australiana BHP foi condenada nos tribunais ingleses pelo colapso da barragem de rejeitos.
Do outro, porém, são 10 anos de lutas desiguais, contra corporações minerárias transnacionais que emperram o andamento das ações judiciais no Brasil (foram absolvidas das acusações criminais, junto com os principais executivos e as empresas que atestaram a segurança da estrutura); contra ações de reparação sem escuta ativa e sem respeitar as necessidades e desejos das pessoas atingidas; contra preconceitos; e contra a invisibilidade.
Um dos espaços onde essa falta de presença se dá com mais força é o jornalismo. De 2015 para cá, houve mudanças perceptíveis na cobertura. Aquilo que num primeiro momento se configurou quase como um assédio a pessoas em choque, traumatizadas, incapazes de elaborar aquilo por que haviam passado, aos poucos se transformou numa escrita jornalística fria, distante.
Por anos, os temas relacionados a Fundão que emergiam na imprensa nacional diziam respeito às ações judiciais, aos desdobramentos nas investigações criminais e aos anúncios feitos pela Renova, entidade criada para, supostamente, gerenciar a reparação, e que sempre foi controlada pelas antigas rés do crime, dissolvida em 2025 porque não cumpriu suas obrigações.
Uma cobertura mais humanizada aparecia apenas nas efemérides, e nem em todas elas, quando veículos do país inteiro vinham dar conta do que estava ocorrendo aqui com as pessoas e comunidades atingidas, ou em veículos independentes ou laboratoriais produzidos no curso de Jornalismo da UFOP. Nos últimos anos, nem isso. Muitos veículos, inclusive mineiros, usaram material produzido pela Agência Brasil para não terem de se deslocar a Mariana.
Aos poucos o cenário vem se transformando, modesta e sazonalmente. Alguns veículos ampliaram, em certa medida, o olhar sobre o crime de 2015, trazendo temas caros às pessoas atingidas, como a violação cotidiana de direitos e os problemas de saúde decorrentes da catástrofe socioambiental. Essa presença mais constante, de uma abordagem menos emotiva e mais focada na perspectiva da luta e dos direitos humanos, modificou inclusive a relação de muitos e muitas atingidas com a imprensa: de desconfiança absoluta a uma atitude mais colaborativa com aqueles que mostravam as angulações para poderem ser atendidos por quem tem uma agenda de luta sem tréguas.
Em 2025, essa mudança ficou perceptível. Fundão já havia voltado aos holofotes desde junho, quando o presidente Lula e uma caravana de ministros estiveram em Mariana para anunciar um controverso acordo de repactuação – uma revisão dos termos da reparação assinada em 2016 –, elaborado mais uma vez sem a presença ou sequer uma escuta responsável e comprometida de atingidos e atingidas. Em novembro, a cobertura, de modo geral, foi respeitosa e buscou equilibrar as dimensões econômicas, jurídicas, socioambientais e o aspecto humano.
Contudo, uma ausência notável permanece e se perpetua, como miopia ou dificuldade de o jornalismo olhar para os acontecimentos com uma perspectiva sistêmica. Pouco ou nada se fala da conexão entre a exploração minerária predatória e a emergência climática. Os efeitos da extração de minerais são visíveis a olho nu, todos os dias, e obviamente cobram sua conta para a cidade, a bacia hidrográfica, o país, o planeta. Parece que mais uma vez, após mais de dois séculos, o minério consegue se esconder de sua responsabilidade sobre a devastação socioambiental do mundo.
Aqui em Mariana, a exploração protagonizada por Samarco, Vale, BHP, Cedro e, em breve, Cidreira – fora a moda das mini minas como a Patrimônio Mineração, na comunidade do Botafogo, em Ouro Preto – prevê o uso de uma quantidade abissal de água, jamais claramente apurada, inclusive para assentar o pó das atividades. Curiosamente, as duas cidades sofrem com falta d’água, a despeito de estarem rodeadas de nascentes.
A poeira que chega à zona urbana leva a diversos problemas respiratórios e de pele e a uma sobrecarga do sistema de saúde. Os serviços de saúde não são os únicos onerados. Mariana enfrenta problemas de saneamento básico e coleta de lixo, devido ao excesso populacional trazido pelos trabalhadores da mineração, além de aluguéis e comida inflacionados. O fluxo de ônibus de transporte de funcionários e de caminhões, alguns de carroceria tripla para transportar máquinas de ficção científica, geram poluição sonora, engarrafamentos, danos abundantes ao asfalto e, óbvio, emissão de gases poluidores.
Uma caminhada nas proximidades das barragens (agora, dizem, em descomissionamento) e pelas áreas de extração exibe a face mais explícita dos danos: o que eram montanhas e morros repletos de vegetação de transição entre mata atlântica e cerrado vão se tornando aos poucos zonas áridas, terrosas, terra arrasada. O reflorestamento parece uma eterna promessa que não se cumpre, porque a expropriação nunca tem fim.
Se vemos grandes reportagens apontando o desmatamento na Amazônia e o garimpo ilegal como vilões das mudanças climáticas, corporações como a Vale surgem como empresas comprometidas com a mineração verde – enquanto transformam a comunidade de Antônio Pereira em cenário de filme de terror em tons avermelhados. Isso sem falar que a zona rural de Mariana e todas essa outras localidades não existem para a mídia.
Quem já ouviu falar de Campinas, Pedras, Ponte do Gama, Águas Claras, ou até mesmo de Paracatu de Baixo e Gesteira, dois subdistritos arrastados, como foi Bento Rodrigues?
Andando um pouco mais, quem, num raio de menos de 100 km de Mariana, já leu ou escutou o nome de Socorro, distrito de Barão de Cocais que guarda semelhanças profundas históricas e demográficas com Bento Rodrigues, mas que carrega o estigma de não ter entrado para a história como terra arrasada, já que lá a barragem da Vale não rompeu, mas expulsou as pessoas de sua tricentenária comunidade desde 2019?
Os impactos imediatos e futuros gerados pelas mineradoras em pequenas cidades de 60, 80 mil habitantes (o IBGE não considera a população flutuante minerária) são desconsiderados pelo jornalismo, que parece não conectar a criação de diversas Marianas, Brumadinhos, Itabiras pelo país com os regimes de chuva irregulares, às tempestades que desalojam populações em vulnerabilidade, às ondas de calor que se multiplicam a cada ano, a secas inclementes, ao desaparecimento de áreas verdes, à morte de nascentes.
São cidades pequenas, desimportantes no cenário geral, parece. Cujos modos de vida esmagados pela mineração não têm noticiabilidade suficiente. A mineração legalizada, chancelada por ANM, MME e tantas siglas governamentais, tem credibilidade para dizer que não polui, mitiga, repara, refloresta, recompõe, devolve o que tirou, ao mesmo tempo que submete comunidades a processos de terrorismo de barragens, chantagens financeiras, violências e incertezas.
Enquanto isso, a Samarco começa um processo de expansão chamado Longo Prazo, com o objetivo de ampliar em 100% a capacidade de extração até 2042. Mais uma vez, o jornalismo parece dar pouca atenção à perspectiva distópica que se avizinha sobre a região, onde nasceu Minas Gerais graças ao ouro e que vive sob a maldição/dádiva do minério desde então.
A cegueira do jornalismo ante a essa conexão flagrante vai custar caro, como já custou em 2015, 2019 e ao longo da história mineira. Quando nossos pequenos problemas explodirem na foz de um rio, quando nossos pequenos danos se tornarem 272 mortos, quando nossas pequenas minas contribuírem para o fracasso do país com as metas de qualquer COP, eles serão novamente noticiados, com surpresa, horror e, provavelmente, a mesma incompreensão estrutural.
A autora agradece a André Luís Carvalho pela leitura e pelas contribuições.
Publicado originalmente em Observatório de Jornalismo Ambiental.
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Karina Gomes Barbosa é Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), convidada por este Observatório em razão de seus estudos que envolvem o desastre-crime que completou recentemente dez anos. E-mail: karina.barbosa@gmail.com.
