Na foto histórica do mesmo local, jovens da Escola de Remo da Pampulha levam embarcação para o lago Arquivo pessoal/Reprodução
São 10h de uma manhã ensolarada e quente, clima ideal para contemplação da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, monumento paisagístico e arquitetônico que, em 17 de julho de 2026, vai completar uma década do reconhecimento como Patrimônio Mundial e Paisagem Cultural. No calor, passa até pela cabeça a vontade de entrar nas águas que, em outros tempos, foram navegáveis e intensamente aproveitadas para esportes náuticos e passeios de fim de semana. Quem se lembra de um passado nem tão distante é o arquitetok e professor David Prado Machado, de 57 anos, que tem o cartão-postal em sua vida desde que nasceu.
“Meu pai comprou, em 1962, a casa onde moro até hoje, então conheço bem a lagoa e seu patrimônio cultural. Já vi um pouco de tudo por aqui. Na infância, me encantava ao admirar muita gente esquiando e passeando de lancha”, afirma David, que tem uma experiência inesquecível do reservatório inaugurado em 1938 para abastecimento público. Ao longo das seis décadas seguintes, viu a represa ganhar outros usos e costumes na capital. Em 1998, aos 31 anos, David entrou para a escola de remo cujo instrutor era Afonso Ligório.
“Foram seis anos com um ótimo grupo de remadores. Chegávamos às 5h30, com o dia ainda meio escuro, fazíamos o aquecimento na orla e depois levávamos os barcos de madeira para a água”, conta o arquiteto e professor, lembrando que, naquela época, as águas já estavam bem poluídas.
Caminhando pela Avenida Otacílio Negrão de Lima, David chega até o atual Centro de Treinamento de Cães da Guarda Municipal, onde ficava a “casa de barcos” usada pelo instrutor e alunos. Uma foto do seu arquivo, em preto e branco, mostra um grupo de remadores entrando em ação sobre a rampa de concreto. “Mas desapareceu o píer ou deck de madeira pelo qual entrávamos nos barcos.”
CERTIDÃO DE NASCIMENTO DO BAIRRO E DO AEROPORTO
Olhando a paisagem que atrai tantos turistas, David diz considerar positiva a iniciativa de reativar a lagoa para passeios, embora tenha certeza do que é fundamental: manter o reservatório livre da poluição e contaminação por esgotos. “Na década de 1940, a Pampulha inaugurou um novo modo de viver. E o local tem vocação para os esportes, conforme assegurou, em 1936, o então prefeito Otacílio Negrão de Lima”, afirma David Prado Machado.
Num relatório, Negrão de Lima, que hoje batiza a via que acompanha a orla, registrou: “A barragem em apreço oferece outros aspectos que devo mencionar. Em torno do grande lago, circundado por uma avenida em construção, é fácil prever a edificação de um novo e pitoresco bairro de recreio, destinado a atrair a afluência daqueles que, em dias de folga, queiram entregar-se a entretenimentos, repousando do diuturno labor na cidade. A larga superfície líquida presta-se aos esportes de natação e remo, assim como ao pouso de hidroaviões. Com a proximidade do campo de aviação, o bairro da Pampulha constituirá, pois, um aeroporto para servir excelentemente a Belo Horizonte”.
BANHO DE MEMÓRIAS E MERGULHOS NO TEMPO
Na conversa com moradores de BH e pesquisas nos arquivos do EM e no extinto “Diário da Tarde”, é possível ver que a Lagoa da Pampulha tem fases bem distintas – e não seria demais dizer que uma tragédia e a poluição são divisores de água nessa história. De 1938 a 1954, as águas do reservatório abasteciam a população e eram usadas para esportes. Em 28 de julho de 1952, houve um campeonato de barcos a vela, saudado com letras garrafais e longas matérias nos jornais: “Transcorre com brilho o certame nacional na represa da Pampulha” e “Singrando as águas da Pampulha”. Na foto, uma jovem “despreocupada”, contempla a beleza da paisagem. Na disputa pelo título da competição, paulistas, baianos, gaúchos e cariocas levaram a melhor nas provas.
As colunas sociais, por sua vez, deitavam e rolavam com a movimentação na Pampulha, aplaudindo os “emocionantes passeios de lancha”. Na coluna Grand Monde, assinada por Rohan, o “Diário da Tarde” mostrava um homem e duas mulheres curtindo o dia, num “dolce far niente”, apenas aproveitando as delícias do lazer.
O ROMPIMENTO QUE MARCOU A HISTÓRIA
Dois anos depois, se encerra um ciclo. Em 20 de abril de 1954, a capital, então com cerca de 50 mil habitantes, registrava o rompimento da estrutura de 20 metros de altura, construída na primeira administração (1935 a 1938) do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1897-1960). Antes do acidente histórico, passageiros que sobrevoavam a lagoa, chegando ou partindo do aeroporto, podiam ler as palavras Pampulha e Belo Horizonte gravadas em letras gigantes na estrutura de cimento, alvenaria e terra — a fenda, conforme mostram as fotos aéreas feitas pela equipe da extinta revista “O Cruzeiro”, atingiu exatamente as sílabas “zon” e “pulha”.
Pelos relatos de antigos moradores, a região, embora ainda não muito povoada, ficou em polvorosa, pois o colapso da represa começou de manhã e se estendeu até a noite. Antes de tudo acontecer, autoridades pediram pelo rádio que as pessoas evacuassem a área. Após o rompimento, a água inundou o aeroporto abaixo da barragem e atingiu toda a região do Vale do Ribeirão do Onça.
“VAMOS RECONSTRUIR EM TEMPO RECORDE”
Muitas casas foram destruídas e houve inúmeros desabrigados, a maioria pessoas de baixa renda. O governador de Minas na época era Juscelino Kubitschek (1902-1976), que havia sido prefeito de BH (entre 1940 e 1945) quando foi inaugurado o Conjunto Moderno com projeto de Oscar Niemeyer (1907-2012), hoje Patrimônio Mundial. “Vamos reconstruir em tempo recorde”, garantiu JK diante do “imenso lodaçal” no qual se transformou o espelho d’água por onde antes navegavam os barcos sobre 18 milhões de metros cúbicos de água.
Desastre à parte, Priscila Freire, hoje com 92 anos, moradora da região da Pampulha há quatro décadas, prefere guardar boas lembranças das manhãs e tardes à beira da lagoa, rodeada de amigos, muitos deles donos de barco, praticantes de remo e de outros esportes. “Era sócia do Iate (Iate Tênis Clube), velejei com a turma, incluindo Mário Fontana (colunista do Estado de Minas, falecido em 2024), vi competições”, afirma Priscila, uma das mais importantes personalidades das artes e da cultura de Minas.
Da década de 1950, ela guarda foto que ilustra bem a época. De maiô, está no alto de uma estrutura do Iate, ao lado das amigas Maria Nelly Carvalho Lopes e Maria Regina Villanova. “Se não tinha carro para ir, a gente pegava ônibus, carona, o certo é que estávamos sempre lá”, afirma.
COMPETIÇÕES LEVAM AO RENASCIMENTO À LAGOA
Já em março de 1961, após as obras no reservatório, os jornais celebravam o renascimento da lagoa, com o torneio de esqui do Pampulha Iate Clube (PIC). Numa foto bem emblemática daqueles tempos, três jovens atletas – Gil César Moreira de Abreu, Oscar Vito Pentagna e Edison Dias – desfilam sobre as águas com bandeiras trazendo as iniciais do clube.
“Mais de vinte mil pessoas se deslocaram para a lagoa, registrando-se a presença de nada menos do que cinco mil veículos, que se esparramaram por todo o lado norte da avenida que circunda a represa. Durante mais de três horas, o numeroso público viu e aplaudiu as evoluções e malabarismos da equipe de esquiadores que se apresentou diante de futura sede do PIC, liderada pelo campeão brasileiro João Soares Lima (Meganha), num show de técnica, arrojo, acrobacia e ritmo que marcará época no calendário esportivo da cidade”, registrou, na época, o “Diário da Tarde”.
ÁGUAS TURVAS DA POLUIÇÃO
Ainda na década de 1960, as competições de esqui aquático continuaram, embora já sob ameaça da xistose, doença causada pelo parasita Schistosoma mansoni e um reflexo da poluição por esgoto. Em 10 de março de 1969, o EM registrou que, sem dar atenção para a parasitose, os desportistas se aventuravam na água: “A cada domingo, a festa se renova por volta das 12h e 13h. O número de lanchas está crescendo dia a dia e já existe até uma certa disputa entre os ‘cobras’ para que se veja quem é o maior de todos”.
As décadas seguinte já apontavam o destino da Pampulha, palco, em 1975, do Campeonato Brasileiro de Motonáutica. Parecia um “canto do cisne”. Houve uma sequência de fatos com a poluição invadindo o espaço, inúmeros tentativas de resolver a questão dos esgotos, até hoje um drama, investimento público a rodo e incertezas no ar – e principalmente na água.
Em 17 de julho de 2016, um alento: o título de Patrimônio Mundial e Paisagem Cultural, títulos concedidos pela Unesco, para levantar o astral e apontar novas direções. Porém, uma década depois, muitas delas ainda são uma promessa.
NOVAS MEDIDAS PARA NAVEGAR ATÉ O FUTURO
Em 5 de outubro último, o prefeito Álvaro Damião participou da assinatura de Termo de Cooperação com a Federação Mineira de Vela (FMVela), com declaração de volta da navegabilidade ao espelho d’água da Lagoa da Pampulha. “Quero que o povo de Belo Horizonte tenha o prazer de ver de dentro da Lagoa da Pampulha a imagem da Igreja de São Francisco, do Mineirão, do Mineirinho”, disse. “Desde que o ex-prefeito Fuad Noman (1947-2025) colocou a mão para fazer a limpeza que vem sendo feita na lagoa, ela vem se transformando. Estou dando continuidade a esse trabalho, às boas práticas do Fuad, e uma delas era cuidar da Lagoa da Pampulha”, destacou o chefe do Executivo municipal.
O projeto-piloto de navegabilidade da Lagoa da Pampulha, iniciado em 12 de dezembro, terá duração de três meses e prevê a contratação, via licitação, de embarcações do tipo catamarã, com capacidade para 30 passageiros sentados e garantia de visibilidade para contemplação da paisagem. As embarcações vão operar de quinta-feira a domingo, com três saídas diárias entre as 8h e 17h. Os ingressos serão gratuitos e disponibilizados em site próprio.
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O passeio terá duração mínima de uma hora (incluindo embarque, desembarque e navegação), em um circuito para contemplação de todos os monumentos do Conjunto Moderno da Pampulha e sua paisagem, acompanhado por guia que vai apresentar conteúdo histórico, cultural e ambiental. A embarcação deve ter banheiro e água disponíveis, além de sistema de som. E proporcionar, esperam todos os apaixonados por um dos principais cartões-postais de BH, uma viagem ao futuro, deixando para trás as águas da poluição e do descaso.
