Não contes a ninguém de onde sou. Especialmente a nenhum futuro pretendente. As pessoas acham que somos doentes”, estas palavras proferidas pela mãe da realizadora cazaque Zhanana Kurmasheva ressoaram profundamente em si, foram decisivas e acompanharam-na na concretização de “We Live Here”, documentário presente no CPH:DOX (Festival de Cinema Documental de Copenhaga), onde concorre ao prémio principal (Dox:Award).

Acompanhando várias gerações que viveram ou vivem na desolada estepe cazaque, num local onde 456 testes nucleares soviéticos foram realizados de 1949 a 1989, expondo 1,5 milhões de pessoas, “We Live Here” segue os efeitos de longo prazo da exposição à radiação e o sofrimento das populações que se estende até hoje, com o surgimento de doenças que podem ser conectadas um legado nuclear de décadas.

Seguindo vias paralelas ou perpendiculares para contar a história de um local de testes nucleares desativado de Semipalatinsk (conhecido como o Polígono, nos temos da URSS), uma das primeiras imagens a que temos acesso neste documentário é à de de dois homens com fatos de proteção nuclear a caminharem por um local onde um lago “construído” por uma das explosões, repleto de água contaminada, tornou todo o espaço circundante inabitável. Não é de todo um estudo pioneiro, já que desde a década de 1950 foram fornecidas evidências dos efeitos prejudiciais aos humanos e ao meio ambiente, as quais foram recebidas com hostilidade, repressão e silêncio pelo estado soviético. Numa outra via, também ela de observação, conhecemos a vida de Bolatbek Baltabek, nascido em 1959, numa família de pastores, recordando este como o chão tremia aquando das explosões e como uma delas tirou a vida à sua irmã mais velha, atingida por destroços de uma habitação afetada pelos tremores. Não foi a única morte que este homem assistiu conectada com os ensaios nucleares, pois perdeu pelo meio um filho, enquanto outro, Nurbol, luta atualmente contra a negação e a burocracia do governo em emendar um decreto que exclui a doença da sua filha — anemia aplástica — como condição ligada à exposição à radiação. 

Traçando uma história e dos diferentes interesses que transformaram este local num espaço para testes nucleares, em particular o interesse da testagem em tempos da Guerra Fria, e o desalento económico pós fim da URSS que fez muita gente invadir “terrenos proibidos”, o filme aventura-se ainda pela questão se, mesmo com estas lições duras do passado que ainda ressoam no presente, a humanidade estará preparada para abandonar por completo a ideia de possuir armamento nuclear, sendo as palavras de um docente e ecologista perante um grupo de crianças claras sobre a pouca probabilidade de tal acontecer.

Com pulso na realização, particularmente nas opções estilísticas claras perante as diferentes camadas que compõem a forma do seu documentário, Zhanana Kurmasheva, sempre apoiada pela montagem de Aidan Serik, num registo fundamentalmente observacional, constrói um objeto que vai além do didatismo e do filme “aviso”, relatando um passado que condiciona o presente e o futuro, nunca tirando o foco nas pessoas que ao longo de décadas vão passando e permanecendo pelo local.

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By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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