Na terceira gravura, a mais obscura, há música por todo o lado. Fica à direita do observador. Para além de uma gaita de fole, que parece estar num ambiente infernal, com terras inflamadas, ainda com chamas ativas, há um par de orelhas que, entre elas, em vez de uma cabeça, têm uma faca. Parece ser uma descrição daquilo que a maioria das pessoas descreveria como um inferno. Mais abaixo, de dentro de um alaúde nasce uma harpa. Qualquer um destes instrumentos é retratado de forma sóbria, com madeira polida, limpa. São tão rigorosos que quase podem ser ouvidos. Porém, debaixo do alaúde, há uma multidão, desproporcionalmente minúscula, tendo em conta o tamanho do instrumento. É lá que está aquela pessoa nua, com uma partitura pintada ou tatuada nas nádegas. A título de curiosidade, há várias interpretações contemporâneas daquela improvável partitura.
Do outro lado, há uma sanfona (um cordofone de origem medieval, com cordas friccionadas por uma roda que é acionada com uma manivela; no Brasil, sanfona é um acordeão), tão sóbria como os outros instrumentos, a destoar com o entorno apocalíptico. Há vários pássaros neste inferno, e um deles até engole uma pessoa (só se veem as pernas de fora daquele bico enorme).
O aviso deixado por Hieronymus Bosch será uma eternidade cheia de música, mas, de forma aparente, só para aqueles que vão parar ao Inferno. Certamente que haverá várias leituras possíveis para esta descrição que o artista nos deixou, principalmente para os especialistas em Teologia, mas não consigo deixar de notar que, através da insistência, ao longo de séculos, de musicólogos, músicos, luthiers (artesãos especializados na construção e manutenção de instrumentos musicais) e entusiastas em geral, a minha realidade diária é parcialmente um inferno de Bosch.
Grande parte dos meus amigos toca vários dos instrumentos que aparecem neste tríptico e, quando estamos juntos, não há revelações apocalípticas. Muitas vezes de forma impensada, até tocamos músicas contemporâneas de Bosch, talvez até mais antigas. Mas, para nós, os que dançam e tocam, está longe de ser o Inferno ou o fim dos tempos. É o princípio de tudo.