Quando o estalido metálico anunciou o quebrar da cadeira, não tive tempo de evitar o desastre — o meu corpo espalhou-se sobre os destroços, numa amálgama de carne e vergonha. Digamos que o prejuízo físico, principalmente nas costas e no rabo, não se comparou ao estrago psicológico nefasto que, ainda hoje, passados mais de vinte anos, carrego comigo.

Toda a minha vida fui “o gordo”, e nada mais que “o gordo”. A minha forma física antecipava qualquer apresentação ou interesse na minha pessoa. Desde pequeno votado à posição da baliza, alvo do escárnio dos rapazes e da repulsa das raparigas. Posso afirmar que durante a infância nunca tive um amigo ou uma amiga, apenas colegas que se interessavam pelos meus lanches avantajados no recreio da escola e faziam da minha lancheira um banquete de gatunos.

Quis ser um homem bom quando fosse adulto, mas é difícil contornar as rotundas de humilhações sem embater, em algum momento, contra a estátua de pedra que as decora. O despiste fundamental aconteceu aos dezoito anos, idade de entrada na Faculdade de Direito. Nem magro, nem inteligente, nem bonito — há tipos que nascem, de facto, com pouca sorte.

Na faculdade deixaram de me chamar “o gordo”, mas começaram a fazê-lo em silêncio, com os olhos numa seta de gozo, e posso garantir que é pior do que o insulto sonoro. Havia apenas um par de olhos que não pousava sobre mim o desdém, as esmeraldas encantadoras de uma rapariga que costumava sentar-se ao meu lado nas aulas de Introdução ao Direito. Sentia-lhe o perfume a baunilha quando compunha o cabelo num rabo-de-cavalo, e todo eu era galope interior; todo eu vontade de ser jockey.

Uma noite em que decidimos ficar até mais tarde na universidade por causa de um trabalho para a cadeira de Ética, perdemos a noção do tempo e passava já das três da manhã quando abandonámos as instalações — um espaço com salas de estudo abertas 24 horas.

Não sei se foi do cansaço, da chuva que a obrigou a juntar-se ao meu corpo na partilha da sombrinha, senti que podia tentar a minha sorte. Nada de muito arriscado, pensei eu, apenas duas frases simples e elogiosas: “Não leves a mal. És muito bonita.” Vi-a enfrentar num ímpeto a chuva, votando-me à solidão de uma sombra seca e definitiva. Nunca mais tentei a minha sorte com outra rapariga nesse atirar-ao-calhas das emoções, percebi que o meu desejo, para ser cumprido, teria de ter um cúmplice — a força.

Eu não queria ter deixado de ser “o gordo” para ser algo pior. Sinto que, de certa forma, foram todas as pessoas que por mim passaram que educaram “o monstro”.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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