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Enquanto aproximadamente três milhões de hectares de terra no Rio Grande do Sul perderam fertilidade após as enchentes de maio do ano passado — segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) —, uma exceção chama a atenção: o assentamento Integração Gaúcha, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), localizado em Eldorado do Sul, região metropolitana de Porto Alegre.

Mesmo com o impacto severo das cheias, que submergiram completamente a cidade e afetaram o local de forma similar, o solo daquela área permaneceu praticamente inalterado.  Apesar de toda a produção ter sido perdida, inclusive toneladas de alimentos armazenados, em menos de três meses a retomada do plantio já era realidade — ao contrário de outras propriedades da região, que seguem tentando se recuperar.

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A principal explicação para esse fenômeno está no tipo de manejo adotado. Ao contrário do plantio tradicional que deixa o solo exposto, o assentamento mantém uma cobertura vegetal constante, respeita os ciclos naturais dos alimentos e adota a rotação de culturas. Essa combinação protege o solo da erosão e da perda de nutrientes.

Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) coletaram amostras no local e confirmaram: não houve mudanças significativas nas características físicas e químicas do solo. “Fizemos ações de apoio após o desastre, incluindo coletas de solo. Os resultados mostraram que ele permanece com altos teores de fósforo e potássio, sem acidificação”, explica o professor Paulo César do Nascimento, um dos autores do estudo.

Segundo ele, o relevo plano de Eldorado do Sul também contribuiu para mitigar os efeitos da enxurrada. Embora a região tenha ficado cerca de 30 dias submersa, a cobertura vegetal e o manejo orgânico foram essenciais para preservar a qualidade da terra. “Esse sistema agroecológico ajudou a manter as propriedades do solo praticamente intactas”, conclui.

Apesar de ser um assentamento rural, o Integração Gaúcha possui grande capacidade produtiva. A previsão para a safra atual era de mais de 100 mil sacas de arroz — aproximadamente 7,5 mil toneladas — além de vasta produção de hortaliças, que abastecem feiras orgânicas em Porto Alegre.

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Após enchente histórica, assentados avaliam permanência e relatam desafios

Criado no início dos anos 1990, o assentamento surgiu em terras abandonadas do Instituto Rio Grandense do Arroz, com famílias vindas de diferentes regiões do estado. Com o tempo, o local se tornou uma referência na produção orgânica deste grão e de hortaliças e leite.

Mesmo localizado a mais de cinco quilômetros do rio Jacuí, uma área que geralmente não sofre alagamentos extremos, o Integração Gaúcha foi surpreendido no dia 2 de maio de 2024. Muitas famílias receberam avisos de evacuação, mas não acreditaram que a água chegaria até ali. Treze pessoas que demoraram a sair precisaram ser resgatadas com um barco adquirido por meio de uma vaquinha entre os próprios moradores.

Segundo os assentados, a prefeitura de Eldorado do Sul não conseguiu prestar socorro, já que toda a cidade estava em calamidade pública. Mesmo assim, os moradores se organizaram. Hoje, produzem e doam mais de mil marmitas por dia para abrigos locais e em Canoas, usando alimentos cultivados no próprio assentamento.

José Mariano Matias, que vive ali há 33 anos, lembra das dificuldades anteriores — como os cinco anos e meio acampado antes da reforma agrária e a pandemia, que reduziu as vendas —, mas afirma que nada se compara ao impacto da enchente. “A maioria saiu com a roupa do corpo, foi uma prova de resistência”, relata.

Gabriel Matias, seu filho e estudante de agronomia, reforça que a prática agroecológica fez a diferença: “A cobertura vegetal criou uma barreira, impedindo que a água arrastasse o solo. Por ser um solo rico, formou-se uma casquinha na superfície que impediu a infiltração.”

No início, a maior parte das famílias queria ser reassentada. Porém, com a rápida recuperação da produção, essa intenção diminuiu significativamente. Atualmente, menos de um terço ainda considera sair.

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Amarildo Mulinari, produtor de arroz, é um dos que desejam deixar a área por medo de novas enchentes. Neste caso, as famílias precisam retornar à fila da reforma agrária e aguardar por novas terras. “Esse desastre tem nome: a ganância do agronegócio. A destruição dos biomas é evidente. A água vai voltar. Sem mata ciliar, os rios vão assorear. Aqui fazemos o certo, mas o entorno não”, alerta.

Apesar de apoiarem o governo federal, Mulinari afirma que a ajuda ainda não chegou como deveria. Os assentados receberam os R$ 5,1 mil de auxílio emergencial, como outros atingidos, mas a recuperação da produção requer mais recursos. Só a bomba de irrigação para o arroz, perdida nas enchentes, custa R$ 35 mil. “Durante a pandemia, doamos dez caminhões de alimentos e mais de 54 mil marmitas só em julho. Queremos continuar ajudando, mas também precisamos ser ajudados.”

Em nota, o governo federal declarou que, por meio do Incra, está adotando medidas para atender áreas de reforma agrária atingidas. Um total de R$ 172,8 milhões foi liberado em créditos extraordinários. Em Eldorado do Sul, 390 famílias serão beneficiadas com crédito produtivo e 79 com acesso à linha habitacional, voltada a quem teve a casa danificada. Além disso, o Incra manifestou interesse em adquirir imóveis do governo estadual para reassentar famílias e também avalia áreas privadas, com apoio do Banco do Brasil e cadastros de devedores da União.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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