A intoxicação por mercúrio já faz parte da realidade dos povos indígenas do Brasil. Há décadas eles são afetados pelas consequências do garimpo de ouro na Floresta Amazônica – principal responsável pela liberação dessa toxina no ecossistema. Em maio, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com os Ministérios da Saúde e dos Povos Indígenas, publicaram um documento inédito que reúne diretrizes voltadas especificamente para o atendimento desses casos de contaminação.
O Manual Técnico para o Atendimento de Indígenas Expostos ao Mercúrio no Brasil traz novos dados epidemiológicos sobre a incidência da condição. Os números foram levantados por meio da revisão de pesquisas anteriores e sugerem que há uma subnotificação nos valores apontados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do governo federal. Enquanto o Sinan registrou 267 casos de contaminação por mercúrio em todas as populações indígenas do país entre 2012 e 2023, diferentes publicações referentes a esse período demonstram que a realidade é ainda mais grave.
Um estudo de 2018 que analisou mechas de cabelo de 239 indivíduos da etnia Yanomami, que ocupam regiões do Amazonas e de Roraima, demonstrou que mais da metade deles apresentava níveis de toxicidade moderado (2,0-6,0 μg/g) ou alto (acima de 6,0 μg/g). Membros da comunidade Pappiu apresentaram uma média de 3,2 µg/g e os de Waikas-Aracaça 15,5 µg/g de mercúrio nas amostras analisadas.
Já uma pesquisa de 2021 com 197 pessoas da etnia Munduruku, no Pará, verificou uma concentração média de 7,7 μg/g de mercúrio nos fios de cabelo dessa população. O mínimo identificado entre os voluntários da coleta foi de 1,42 µg/g e o máximo de 23,9 µg/g. Essas medidas são superiores aos limites considerados seguros pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2010, a OMS definiu que o valor considerado seguro da toxina é de 0,23 µg/kg, o que significa uma concentração de 2,0 µg/g de mercúrio no cabelo.
A subnotificação dessas intoxicações ocorre em razão das dificuldades para identificar adequadamente os casos. “Por isso, nossa ideia era construir um guia que os profissionais de saúde pudessem consultar para entender as particularidades do problema e aplicar diretrizes eficientes em seus atendimentos, para melhorar a qualidade dos cuidados com a população amazônica”, relata a bióloga Ana Claudia Santiago de Vasconcellos, especialista em Saúde Pública e coordenadora do manual.
Problema crônico na Amazônia
Desde a década de 1970, quando o garimpo começou a explorar os recursos naturais na Amazônia, o mercúrio tem afetado diretamente os povos tradicionais, ribeirinhos e quilombolas. Sua contaminação se dá, sobretudo, por meio da alimentação, que costuma ser baseada na ingestão de pescados, os quais estão contaminados com grandes concentrações de metilmercúrio, a forma orgânica do metal.
Esse composto é formado pela ação de micróbios que vivem em sistemas aquáticos a partir do mercúrio inorgânico, utilizado por garimpeiros para separar com mais facilidade o ouro dos demais sedimentos. O metal, então, é absorvido pelos peixes que vivem nos rios e fica distribuído pelos seus tecidos.
Quando um humano se alimenta desse peixe, também adquire uma parte da toxina. “O grande desafio da contaminação por mercúrio é que, por mais grave que seja, ela ainda é um problema silencioso”, explica Vasconcellos. “Como a toxina costuma entrar no corpo humano em pequenas quantidades, ela tem um efeito cumulativo, o que significa que seus sintomas não são facilmente associados a uma intoxicação.”
Um adulto contaminado por metilmercúrio pode apresentar, por exemplo, tremores, dor de cabeça persistente, dificuldade para dormir e falta de coordenação motora. Esses sinais são comuns a diversos outros quadros clínicos, de modo que a intoxicação raramente é levantada imediatamente.
Outra dificuldade no diagnóstico está ligada ao fato de que a substância interage de maneira diferente em cada indivíduo. Certas pessoas têm uma predisposição genética que as tornam mais vulneráveis aos efeitos do mercúrio, já outras são mais resistentes a ele. A idade também importa. “A intoxicação pode ser particularmente prejudicial a crianças e fetos”, destaca o infectologista Manuel Mindlin Lafer, do Einstein Hospital Israelita.
Nos pequenos, a toxina pode enfraquecer o sistema imune e levar a problemas neurológicos, como malformação e dificuldade no desenvolvimento neuropsicomotor. Isso inclui casos de neuropatia periférica (danos nos nervos que causam sintomas de fraqueza, dormência e dor) e déficit de concentração, memória e aprendizado.
Adultos, por sua vez, podem ter perda de visão lateral, alteração da audição, dificuldade na coordenação motora e diminuição da sensibilidade. Também é comum o aparecimento de problemas cardiovasculares, com aumento no risco de infarto do miocárdio e hipertensão.
Sem cura
Não existe um medicamento capaz de eliminar o mercúrio do corpo humano, portanto, não há cura para casos crônicos. “Dessa forma, os cuidados acabam sendo sintomáticos, ou seja, se a pessoa está apresentando problemas neurológicos, ela será encaminhada para um neurologista, e assim por diante”, explica Lafer.
Nos quadros menos graves, em que não há complicações, o tratamento consiste em “atacar” a causa da intoxicação – no caso de indígenas, o consumo de peixes. Embora não elimine a presença do metal do corpo, ajuda a frear os efeitos da contaminação.
Como esses animais fazem parte da cultura alimentar de diversos grupos indígenas, a ideia não é, necessariamente, eliminar os pescados, mas propor substituições na dieta. As diretrizes do manual sugerem que, em vez do consumo de peixes carnívoros (como pirarucu, tucunaré e piranha), as populações devem preferir espécies de hábitos herbívoros, tais quais pacu, aracu e tambaqui.
Assim como acontece com os seres humanos, os peixes que se alimentam de outros exemplares contaminados também absorvem uma parte das toxinas presentes no corpo de suas presas. Esse fenômeno, conhecido como biomagnificação, faz com que o metilmercúrio se acumule ao longo da cadeia trófica e, com isso, seja encontrado em maior concentração nos animais carnívoros.
Nos quadros graves, muitas vezes é necessário o encaminhamento para especialistas como cardiologista, fisioterapeuta e neuropsicólogo. Na Amazônia, porém, a distância de centros urbanos com hospitais ou centros médicos pode ser um empecilho a esses atendimentos. Daí a importância da prevenção e do diagnóstico precoce.
Guia de manejo da saúde indígena
Para atender pacientes em comunidades indígenas, as equipes de saúde precisam, antes de tudo, conquistar a confiança da população e de suas lideranças. “Os médicos devem ser introduzidos como parte do sistema de saúde deles, que já conta com maneiras próprias de identificar e tratar doenças”, afirma Manuel Lafer, que também atua no Ambulatório do Índio da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Foi por esse motivo que os pesquisadores da Fiocruz pensaram em diretrizes que pudessem ser adotadas por diferentes categorias profissionais: médicos, enfermeiros, agentes de saúde e indigenistas. Essa equipe interdisciplinar pode conduzir o atendimento primário da melhor forma possível, levando em conta as particularidades de cada local.
Para implementar as recomendações do documento, os pesquisadores planejam promover capacitações com as equipes de saúde atuantes nos territórios indígenas. A ideia é priorizar locais que atendem o maior número de pessoas expostas ao mercúrio, como Amapá e Norte do Pará. “Não é comum encontrar casos de intoxicação por mercúrio fora da região Norte. Isso significa que a maioria dos profissionais da saúde não aprende a lidar com esse tipo de quadro clínico”, observa o médico do Einstein. “Assim, ter materiais como esse à disposição pode ser muito benéfico para aprimorar os cuidados dessas populações.”
Fonte: Agência Einsteinƒint
The post Subnotificação esconde impacto da intoxicação por mercúrio em indígenas appeared first on Agência Einstein.