Os primeiros socorristas chegaram à aldeia Bibi Aysha mais de 36 horas depois de um terremoto devastar assentamentos nas áreas montanhosas do leste do Afeganistão no último domingo, 31. Porém, em vez de trazer alívio, a imagem gerou medo entre as afegãs; não havia uma única mulher entre eles.
As normas culturais afegãs, aplicadas mesmo em emergências pelo Talibã no poder, proíbem o contato físico entre homens e mulheres que não sejam familiares.
Na aldeia de Andarluckak, na província de Kunar, a equipe de emergência transportou às pressas homens e crianças feridos e tratou seus ferimentos, disse Aysha, de 19 anos. Porém, ela e outras mulheres e adolescentes, algumas delas sangrando, foram deixadas de lado.
“Eles nos reuniram em um canto e se esqueceram de nós”, disse ela. Ninguém ofereceu ajuda às mulheres, perguntou o que precisavam ou sequer se aproximou delas.
Tahzeebullah Muhazeb, um voluntário que viajou para Mazar Dara, também na província de Kunar, disse que membros da equipe médica composta exclusivamente por homens hesitaram em retirar as mulheres dos escombros dos prédios desabados.
Em vez disso, mulheres presas e feridas foram deixadas sob as pedras, esperando que mulheres de outras aldeias chegassem ao local e as desenterrassem.
“Parecia que as mulheres eram invisíveis”, disse Muhazeb, 33. “Os homens e as crianças foram atendidos primeiro, mas as mulheres ficaram sentadas, esperando atendimento”.
Se não houvesse nenhum parente homem presente, ele relata, os socorristas arrastavam as mulheres mortas pelas roupas, para que não entrassem em contato com a pele.
Tratamento desigual
Mais de 2.200 pessoas morreram e outras 3.600 ficaram feridas no terremoto de magnitude 6 que arrasou inúmeras aldeias e vilarejos, de acordo com dados divulgados pelo governo do Afeganistão.
Segundo grupos de ajuda e organizações humanitárias, a resposta ao terremoto exemplificou a situação que mulheres e meninas enfrentam no Afeganistão, presas sob os escombros e o peso da discriminação de gênero.
“Mulheres e meninas sofrerão novamente o impacto deste desastre, então precisamos garantir que suas necessidades estejam no centro da resposta e da recuperação”, disse a representante especial da ONU Mulheres no Afeganistão, Susan Ferguson, em um comunicado esta semana.
Entidades afirmam que mulheres vítimas de terremoto no Afeganistão não receberam atendimento por causa do Talibã Foto: SP/Adobe Stock
Embora o Talibã não tenha divulgado a porcentagem das vítimas por gênero, as mulheres enfrentaram uma provação especialmente dura, agravada pela negligência e isolamento, disseram em entrevistas mais de meia dúzia de médicos, equipes de resgate e mulheres em áreas atingidas pelo terremoto.
O Afeganistão enfrenta uma grave escassez de profissionais de saúde e, em particular, de mulheres nessa área. No ano passado, o Talibã proibiu a matrícula de mulheres em cursos de medicina. A falta de médicas e socorristas ficou evidente após o terremoto.
Esse grupo enfrenta algumas das restrições mais severas do mundo sob o regime do Talibã, que assumiu o poder há quatro anos e permaneceu inabalável, mesmo quando a maior parte do mundo muçulmano e inúmeras organizações e órgãos de direitos humanos, como o Banco Mundial, alertaram sobre os efeitos duradouros dessas políticas no tecido social e na economia do país.
Meninas são proibidas de frequentar a escola além do sexto ano. Mulheres não podem viajar longas distâncias sem um acompanhante masculino e são impedidas de exercer a maioria dos empregos, inclusive em organizações sem fins lucrativos e humanitárias.
Segundo a Unesco, em três anos no poder, os talibãs ‘quase acabaram com duas décadas de progresso constante na educação no Afeganistão, e o futuro de uma geração inteira está agora em risco’ Foto: © UNESCO Navid Rahi
Mulheres afegãs que trabalham para agências da ONU têm enfrentado assédio recorrente, culminando em ameaças tão graves este ano que as instituições aconselharam suas funcionárias a trabalhar temporariamente em casa.
Regras do Talibã
No Afeganistão, normas culturais e religiosas rígidas, impostas pelo governo Talibã, determinam que apenas um parente próximo do sexo masculino de uma mulher — seu pai, irmão, marido ou filho — tem permissão para tocá-la.
O mesmo se aplica ao contrário: mulheres não podem tocar em homens fora da família. Em zonas de desastre, socorristas são impedidas de ajudar homens. Mas uma mulher pode resgatar mulheres sem parentesco sob os escombros.
Um jornalista do New York Times que chegou à região de Mazar Dara no dia seguinte ao terremoto não viu nenhuma mulher entre as equipes médicas, de resgate ou de assistência que tratavam das vítimas. Em um hospital distrital visitado, não havia nenhuma funcionária feminina.
Quando um pequeno número de enfermeiros e trabalhadores humanitários começou a chegar às áreas afetadas na terça-feira, apenas algumas eram mulheres. Soldados as seguiram e impediram jornalistas de fazer perguntas ou fotografá-las.
Um porta-voz do Ministério da Saúde administrado pelo Talibã reconheceu que havia falta de profissionais de saúde femininas nas áreas devastadas pelo terremoto.
“Mas nos hospitais de Kunar, Nangarhar e Laghman, a maior parte de médicas e enfermeiras está trabalhando, especialmente para tratar as vítimas do terremoto”, disse Sharafat Zaman, o porta-voz, sobre as províncias mais atingidas.
O Afeganistão ainda está lidando com tremores secundários. Na quinta-feira, um tremor de magnitude 5,6 atingiu o país.
Na aldeia da Aysha, nenhuma trabalhadora humanitária havia chegado até quinta-feira, quase quatro dias após o terremoto. Ela e seu filho de 3 anos passaram as últimas três noites ao relento, pois a chuva a impedia de chegar a um abrigo ou à cidade onde seu marido trabalha.
“Deus salvou a mim e ao meu filho”, disse Aysha. “Mas depois daquela noite, eu entendi: ser mulher aqui significa que somos sempre as últimas a ser vistas.”
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