Opinião
A recente decisão da Suprema Corte inglesa, que responsabilizou a mineradora anglo-australiana BHP pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), marca um dos capítulos mais relevantes da história jurídica e socioambiental brasileira. Tratou-se de um julgamento emblemático não apenas pela dimensão do desastre que, relembre-se, causou dezenas de mortes, deixou centenas de famílias desabrigadas e comprometeu mais de 50 municípios nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Foi também paradigmático pelo caminho que as vítimas necessitaram percorrer para ver juridicamente reconhecido o seu direito à reparação.
Antonio Cruz/Agência Brasil
A tragédia de Mariana permanece como o maior desastre socioambiental do Brasil. Passados quase dez anos, inúmeras vítimas ainda aguardam indenizações integrais, e muitos municípios seguem enfrentando a demora da Justiça brasileira em dar uma resposta efetiva. Foi justamente essa morosidade que levou municípios e vítimas a buscarem a jurisdição inglesa, já que uma das proprietárias da Samarco, a BHP, poderia ser responsabilizada em seu próprio foro. Esse movimento, que tem sido também discutido no Brasil no âmbito de uma ADPF em curso no STF, suscitou o debate sobre a legitimidade de municípios litigarem no exterior.
Não há impedimento para reparação no exterior
A posição vencedora, com a qual concordo integralmente, é claríssima: não há qualquer impedimento constitucional para que municípios brasileiros busquem reparação em tribunais estrangeiros. Trata-se de matéria também de direito internacional privado, pois, se particulares podem pleitear indenizações fora do país, com maior razão também podem fazê-lo os entes públicos diretamente afetados por danos causados por empresas estrangeiras em território nacional, especialmente diante de um dano socioambiental de tamanha magnitude.
A Justiça inglesa reconheceu sua competência para julgar o caso e o fez aplicando o direito brasileiro, algo que muitos ainda desconhecem ou interpretam de forma equivocada. Não houve “importação” de normas estrangeiras para julgar a BHP; ao contrário, o tribunal inglês aplicou o direito do local do dano, isto é, o direito do nosso país, conforme exige a própria lógica do direito internacional privado. Para isso, contou com a participação de especialistas brasileiros, como o professor Ingo Sarlet, que esclareceram aos magistrados ingleses o funcionamento das normas e jurisprudência brasileiras.
O que ficou demonstrado, à luz do nosso ordenamento jurídico, foi que a BHP não exerceu a devida diligência na operação da barragem. Houve avisos técnicos, alertas de risco e conhecimento prévio da instabilidade da estrutura. A empresa, mesmo assim, assumiu conscientemente os riscos, permitindo a continuidade da operação até que o rompimento produzisse a devastação que conhecemos. Por isso, o tribunal estabeleceu a responsabilidade direta e objetiva da mineradora pelos danos socioambientais — exatamente como prevê a regra do direito brasileiro.
Exemplo para crimes socioambientais
A decisão foi, portanto, uma vitória significativa para os municípios, para as milhares de vítimas que, por quase uma década, enfrentam as consequências dessa tragédia e também para o direito brasileiro, que, o contrário do que afirmam alguns observadores, sai completamente fortalecido, mostrando-se um notável exemplo ao mundo de como tratar crimes socioambientais cometidos por corporações multinacionais.
Além disso, com a decisão vindo a público em plena vigência da COP30, que voltou os olhos do mundo para o Brasil e para a urgência da proteção ambiental, a sentença assume valor simbólico importante: reforça que desastres ambientais não ficam impunes quando atravessam fronteiras e quando envolvem atores econômicos globais.
Momento das indenizações
Agora, o processo ingressa em uma segunda fase, que será dedicada à valoração dos danos para a devida quantificação das indenizações, etapa essa prevista para julgamento em outubro de 2026. A Justiça inglesa já reconheceu que o que foi pago no Brasil a título de indenização deve ser abatido do valor total, evitando duplicidade de pagamentos, mas também assegurando que as reparações sejam adequadas e proporcionais ao dano real sofrido pelos prejudicados. Com isso, as vítimas podem, finalmente, vislumbrar uma resposta concreta depois de tantos anos de espera angustiante.
A sentença de Londres inaugura um precedente global de grande relevância para o direito em geral, e para o direito internacional privado, em especial, ao demonstrar que buscar reparação no exterior não apenas é possível, como há de ser decisivo para garantir justiça. E reafirma que empresas transnacionais devem observar padrões rígidos de diligência onde quer que atuem, sob pena de responderem globalmente por catástrofes que poderiam ter sido evitadas.
