Estudo inédito realizado pela Secretaria de Agricultura do Distrito Federal (Seagri-DF), em parceria com o Instituto Oca do Sol e o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, traçou o mais completo retrato ambiental já feito sobre as nascentes da Serrinha do Paranoá, a maior área natural do entorno do Lago Paranoá (leia Saiba mais).

O diagnóstico, concluído este ano, revela uma realidade preocupante: a degradação avança sobre as fontes de água que abastecem o principal reservatório de Brasília, com impactos que vão da poluição à redução da vazão e à perda de cobertura vegetal.

Ao longo de quase dois anos, técnicos e pesquisadores percorreram estradas de terra, trilhas e propriedades rurais para identificar, georreferenciar e avaliar 119 nascentes distribuídas entre as microbacias do Bananal, Torto, Urubu, Taquari, Palha, Jerivá, Capoeira do Bálsamo, Olhos d’Água e Tamanduá.

De acordo com o trabalho, boa parte dos manciais da Serrinha apresenta algum nível de degradação, medido pelo Índice de Impacto Ambiental de Nascentes (IIAN), método que avalia o grau de conservação e os principais fatores de pressão sobre cada ponto de água. Das 119 avaliadas, mais de 60% estão em situação de médio a alto impacto e apenas uma parcela reduzida mantém características naturais bem preservadas, com vegetação ciliar densa e água cristalina (veja Numeralha).

Entre os principais problemas identificados, estão a redução da vazão (algumas nascentes, inclusive, se tornaram temporárias); ocupações irregulares, com pressão imobiliária crescente, especialmente nas bordas urbanas do Lago Norte, Varjão e Taquari; poluição por lixo e esgoto, sendo que, em algumas áreas, fossas rudimentares contaminam o lençol freático; perda de vegetação nativa e presença de espécies invasoras (a substituição do Cerrado por pastagens e monocultivos reduziu drasticamente a proteção natural das nascentes); e erosão e assoreamento: a falta de mata ciliar facilita o carreamento de sedimentos para os mananciais, aumentando a turbidez da água e afetando a fauna aquática.

“Em alguns pontos, o que antes era uma nascente virou apenas um brejo ou um filete de água. É um processo silencioso, mas contínuo”, observa o engenheiro ambiental Rodrigo Oliveira Werneck, do Instituto Oca do Sol, responsável pela cartografia do estudo. “Quando a Serrinha perde vazão, o Lago Paranoá sente”, alerta.

Desconhecimento

Segundo Werneck, das 119 nascentes mapeadas, apenas cerca de 20 estão em áreas públicas. O restante, em propriedades privadas. O desconhecimento sobre a existência dos mananciais chamou a atenção do engenheiro ambiental durante o estudo. “Muita gente nem sabia que tinha uma nascente dentro da própria casa. A gente chegava com o mapa, mostrava, e a pessoa dizia: ‘Ué, mas isso aqui é nascente?'”, relatou.

Além da falta de informação, ele aponta o fácil acesso como um fator que aumenta o risco de contaminação dos mananciais. A nascente que fica perto da Prainha do Lago Paranoá, por exemplo, conhecida como “Bica”, onde os ciclistas costumam parar para pegar água, é um caso extremo de exposição e pressão humana sobre uma nascente, segundo o especialista. “Ela está praticamente no acostamento da rodovia, totalmente exposta, com risco de contaminação e erosão, num local onde há incêndios frequentes”, comentou.

Outro desafio, conforme o especialista, é o tipo de vegetação que hoje ocupa grande parte da Serrinha. “Muitas áreas, onde originalmente havia campo limpo, Cerrado sensu stricto ou mata de galeria, acabaram tomadas por espécies exóticas como leucena, margaridão e braquiária — plantas agressivas, que se dispersam facilmente e dificultam o retorno da vegetação nativa”, explicou.

Para Werneck, a ocupação humana na Serrinha segue um padrão curioso e contraditório: busca-se a paisagem natural, enquanto se elimina justamente o que garante essa paisagem. Para ele, parte dos novos moradores quer “o silêncio, o verde e o cheiro do campo”, mas, ao mesmo tempo, amplia casas, acende fogo para limpar áreas, constrói muros sobre córregos e avança sobre áreas de preservação permanente.

Apesar disso, o diagnóstico mostrou que quase todos os proprietários estariam dispostos a recuperar os mananciais caso recebessem orientação técnica e apoio do Estado. Por isso, Werneck acredita que a Serrinha ainda tem tempo para se recuperar. “O mais importante, agora, é transformar o relatório em ação concreta, combinando ciência, fiscalização e participação social.”

A fim de mitigar o problema, o relatório recomenda uma combinação de revegetação nativa, controle de espécies invasoras, proteção física das nascentes, saneamento adequado, participação comunitária e políticas públicas permanentes como caminho para recuperar as fontes de água da Serrinha do Paranoá.

“A gente já sabe onde estão os pontos críticos, o que precisa ser plantado e como fazer”, resumiu o engenheiro ambiental, destacando que proteger as nascentes é proteger o futuro de Brasília. “Se a gente cuida da Serrinha, cuida do Lago Paranoá — e, no fim das contas, cuida de quem vive aqui.” 


localizacao serrinha paranoa

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(foto: editoria de arte)

Moradores buscam soluções

A redução da vazão das nascentes da Serrinha do Paranoá não é percebida apenas pelos levantamentos técnicos, mas, também, por quem vive há décadas no território. Moradora do Núcleo Rural Tamanduá desde 2005, a líder comunitária Adna Santos de Araújo viu a qualidade e o volume da água no local se deteriorarem. “Quando cheguei aqui, o córrego Tamanduá tinha uma força incrível. A gente bebia a água, cozinhava, tomava banho. Era limpa, cristalina”, lembrou.

Segundo ela, o avanço das construções, a pavimentação e a expansão urbana alteraram de forma evidente o fluxo hídrico. “Hoje, a água está contaminada. O córrego só continua existindo porque a gente limpa e cuida”, afirma. Sem recursos ou assistência técnica, muitos moradores dependem de mutirões e parcerias voluntárias, como no caso da nascente do Tamanduá.

Após procurar o Instituto Oca do Sol, Adna conseguiu apoio para plantio de 85 mudas de açaí — uma espécie indicada por sua capacidade de enraizar e estabilizar o solo. “A gente não tinha condição de comprar. Foram doadas e plantadas por voluntários. Mas falta política pública para isso. Muitos proprietários querem cuidar, mas não têm como.”

Para ela, a solução passa por uma ação coordenada do poder público com caráter educativo — e não apenas punitivo. “Ninguém aprende só dizendo que é proibido construir, que ocupação irregular dá cadeia. É preciso explicar por quê”, defende. Ela propõe uma campanha permanente sobre emergência climática, escassez hídrica e impactos das ocupações na região. “Quando uma nascente morre, não morre só uma fonte d’água. Morre comida, morre produção, morre futuro.” 

Órgãos reconhecem a importância da área

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Agricultura do Distrito Federal (Seagri-DF) afirmou que o diagnóstico das nascentes da Serrinha do Paranoá foi motivado pela necessidade de identificar e mapear os recursos naturais presentes em áreas rurais estratégicas. Segundo a pasta, o levantamento é uma etapa essencial para orientar políticas de manejo e prevenção, garantindo que a produção agrícola local ocorra de maneira compatível com a conservação ambiental. A secretaria destacou, ainda, que a agricultura, quando conduzida de forma sustentável, pode ser mais eficiente na proteção da paisagem e dos recursos hídricos do que o avanço urbano desordenado — considerado hoje o principal vetor de pressão na região.

Sobre a implementação das medidas recomendadas no relatório — como cercamento de APPs, restauração vegetal e manejo adequado do solo — a pasta não informou orçamento nem cronograma específicos, mas afirmou que suas ações estão alinhadas ao Plano Plurianual e ao planejamento estratégico do governo. A secretaria citou, ainda, o programa Reflorestar, que vem estimulando práticas conservacionistas no Distrito Federal e promovendo apoio técnico aos produtores.

O Brasília Ambiental (Ibram) reconheceu que, embora a Serrinha esteja dentro de duas Áreas de Proteção Ambiental (APAs), esse tipo de unidade prevê ocupações particulares em seu interior, o que explica parte da complexidade fundiária no local. Segundo o órgão, muitas das ocupações identificadas não são ilegais, mas fruto de cessões públicas antigas ou parcelamentos irregulares ainda em disputa administrativa. Entre 2017 e 2025, o instituto registrou 53 ações de fiscalização dentro de Áreas de Preservação Permanente (APPs) da Serrinha — 11 delas resultaram em autuação por infrações ambientais e apenas uma foi registrada especificamente por supressão irregular de vegetação. O Ibram informou que a criação de uma unidade de conservação de proteção integral na área não é viável no momento, mas há debates sobre a criação do Parque Distrital Pedra dos Amigos em trecho específico.

A Caesb declarou reconhecer a importância ambiental da Serrinha e informou que monitora de forma contínua a qualidade da água nas microbacias que alimentam o Lago Paranoá. A companhia afirmou que a água captada passa por tratamentos avançados, incluindo ultrafiltração, garantindo padrões de potabilidade mesmo diante de casos pontuais de contaminação. A empresa também disse investir na modernização de estações de tratamento de esgoto e no combate a ligações clandestinas, afirmando apoiar iniciativas de conservação e recuperação ambiental na região.

Responsável pela fiscalização de ocupações irregulares, o DF Legal informou que a Serrinha do Paranoá é uma das áreas prioritárias monitoradas por georreferenciamento. A pasta afirmou que, de janeiro de 2024 a outubro de 2025, realizou 166 ações de fiscalização e 57 operações voltadas ao combate a parcelamentos ilegais — número significativamente maior que o registrado no ano anterior. Segundo o órgão, a atuação de grileiros e a velocidade das ocupações irregulares dificultam o controle territorial, e a capacidade operacional disponível nem sempre permite respostas imediatas. O DF Legal afirmou que denúncias de moradores podem ser encaminhadas pelo telefone 162 ou pelo ParticipaDF, mas reforçou a necessidade de envio de localização precisa e imagens para viabilizar as ações.

Sobre a implementação de ações articuladas entre os órgãos, o DF Legal e o Ibram afirmaram que a integração já ocorre por meio de grupos técnicos, trocas de informação e abertura de operações conjuntas sob demanda, mas ambos aguardam o envio oficial do relatório para análise detalhada. As pastas afirmaram que, caso seja identificada a necessidade de ampliar operações na Serrinha, novas ações poderão ser programadas. A Adasa não se manifestou até o fechamento desta reportagem. 

Saiba mais

A Serrinha do Paranoá desempenha um papel estratégico para a manutenção do Lago Paranoá. Localizada na região que concentra a maior quantidade de nascentes conectadas ao reservatório, ela funciona como uma das principais áreas de recarga hídrica do Distrito Federal. Ali se originam cursos d’água fundamentais para alimentar o lago, garantindo fluxo contínuo e contribuindo para a regulação do nível e da qualidade da água.

O relatório aponta que essa conexão não é apenas física, mas ecológica. A vegetação nativa do Cerrado presente na Serrinha — especialmente campos úmidos, matas de galeria e áreas de vereda — atua como filtro natural, retendo sedimentos, regulando a infiltração da água da chuva e reduzindo a contaminação por esgoto, resíduos e substâncias químicas. Sem essa barreira ecológica, o lago ficaria mais sujeito ao assoreamento, eutrofização e perda de biodiversidade.

Além disso, a Serrinha mantém processos hidrológicos essenciais para o funcionamento do sistema hídrico local: infiltra, armazena e libera água gradualmente para o Paranoá, sobretudo nos períodos secos — mecanismo natural que reduz oscilações no volume disponível. Por isso, a conservação das nascentes e da vegetação da Serrinha é decisiva para a segurança hídrica de Brasília, para o equilíbrio ambiental do lago e para o abastecimento humano, já que parte da água tratada no Distrito Federal depende da estabilidade hidrológica desse território. 

Numeralha

  • 119 nascentes mapeadas na Serrinha do Paranoá
  • 31% – ótimas ou boas
  • 37% – razoáveis
  • 21% – ruim ou péssima

 


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By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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