O som das flautas preenche o ar logo cedo, marcando a abertura do Kuarup na aldeia Yawalapiti, no sul do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Homens enfileirados tocam seus instrumentos, seguidos pelas mulheres. A cena anuncia o início de um dos rituais mais importantes da vida xinguana.
O Kuarup é uma celebração fúnebre, mas também de afirmação cultural. Ao longo de dois dias, povos vizinhos são convidados formalmente e se unem para prestar a última homenagem a pessoas de destaque que morreram no último ano. Os troncos de madeira erguem-se no centro da aldeia como símbolos dos mortos, enfeitados para a despedida final. Música, canto, luta e partilha de alimentos transformam o luto em vida coletiva.
“O Kuarup começa com uma situação muito triste. Primeiro a gente sofre a perda, depois tira o luto. Mas, no final, é muita alegria, muita emoção. Todo mundo feliz, a criança, o jovem, o velho”, explica Tapi Yawalapiti, cacique da aldeia.
Por trás da música e da dança que encerram o luto, no entanto, paira uma ameaça crescente: os múltiplos impactos do desmatamento, da crise climática e da contaminação que já comprometem elementos centrais da celebração.
Floresta ilhada
Criado em 1961, o Parque Indígena do Xingu é a primeira grande reserva demarcada pelo governo brasileiro. Ali vivem hoje 16 povos, cada um com sua língua e tradições, somando pouco mais de 6 mil pessoas em mais de 40 aldeias. O Alto Xingu, região sul da Terra Indígena, reúne onze povos integrados por um sistema cultural comum, do qual o Kuarup é a expressão máxima.
Ao longo das últimas quatro décadas, porém, o entorno do Xingu foi completamente transformado. Estima-se que quase 60 mil quilômetros quadrados de floresta foram derrubados desde os anos 1980 para dar lugar a pastagens e lavouras de soja e milho. De cima, o parque se tornou uma ilha verde cercada por monoculturas.
“Ao todo, perdemos, em 40 anos, o equivalente a uma Ucrânia de floresta amazônica”, resume Marcos Rosa, pesquisador do MapBiomas. Ele lembra que o arco do desmatamento (norte do Mato Grosso, sul do Pará e Maranhão) concentrou as maiores derrubadas entre os anos 1980 e 2000. “Essa região consolidou a expansão agropecuária, especialmente nas cabeceiras do Xingu. Hoje, os desmatamentos são mais pulverizados, mas continuam impactando diretamente os rios que abastecem o parque” .
Essa conversão trouxe consequências diretas ao clima local. Árvores amazônicas funcionam como bombas d’água: cada hectare lança na atmosfera até mais do que o dobro de vapor de água que uma mesma área de lavoura. Sobretudo na época das secas, quando retiram água a sete metros de profundidade, contra um metro em média nas plantações. Ao retirar a floresta, o ciclo de chuvas se desorganiza.
“O que acontece quando você tira a floresta e coloca pasto? Você reduz a precipitação, reduz a evapotranspiração, aumenta a temperatura e prolonga a seca“, explica Gilvan Sampaio, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Em algum momento, esse sistema colapsa. Talvez em uma ou duas décadas aquela região se torne improdutiva.”
Seca e calor
A fragilidade da proteção legal preocupa ainda mais diante de iniciativas recentes. Em janeiro de 2025, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovou um projeto de lei que permite a reclassificação de áreas da Amazônia para Cerrado, reduzindo drasticamente a exigência de preservação.
Na prática, a medida autoriza que produtores desmatem até 80% de suas terras em áreas “reclassificadas”, contra o mínimo de 80% de preservação exigido para imóveis rurais em áreas da Amazônia Legal. Ambientalistas apontam que o projeto pode abrir brechas para acelerar o desmatamento em regiões críticas de transição, como o entorno do Xingu. O Ministério Público já estuda contestar a proposta na Justiça.
Para os povos indígenas, a mudança é mais um sinal de que o futuro da floresta – e de seus rituais – depende não só do clima, mas também das escolhas políticas. Vivendo lá, eles percebem a mudança diariamente. “A mudança climática já está afetando a nossa vida. O rio está secando, pouca chuva e muito calor. O nosso plantio não está mais podendo nascer, crescer, porque é muito quente”, alerta o cacique da aldeia, Tapi Yawalapiti.
O impacto é visível na mandioca, base da alimentação e ingrediente indispensável para o beiju servido durante o Kuarup. Com o atraso da época chuvosa e o calor do solo, as sementes tardam a germinar, quando o fazem, e acabam crescendo menos do que o normal. Muitas mudas morrem antes mesmo de gerar alimento. Diante disso, povos como os kalapalo buscam alternativas em agroflorestas para tentar manter a produção, combinando árvores, arbustos e cultivos agrícolas. Mas a irregularidade da chuva e o avanço de animais silvestres em busca de comida tornam o desafio cada vez maior.
A água, fonte de vida no Xingu, também se torna escassa. Rios que antes sustentavam a pesca abundante, como o Tuatuari, apresentam trechos cada vez mais secos. “Nesse rio, não tem mais peixe. O que estava para cima veio tudo para cá, onde deságua no Xingu. E mesmo assim já não é suficiente para alimentar os meninos”, conta Tunuli Yawalapiti, raizeiro e curandeiro.
A pesca coletiva que antecede o ritual tem rendido quantidades cada vez menores. A escassez obriga os homens a arrastar grandes redes de margem a margem para garantir alimento aos visitantes. Ainda assim, muito do que se serve é pouco diante da memória de fartura de décadas atrás.
Contaminação invisível
Além da seca, cresce a preocupação com a qualidade da água. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz detectou 28 tipos diferentes de agrotóxicos em amostras de chuva, rios, poços e até alimentos em terras indígenas vizinhas ao Xingu. Entre eles, pesticidas proibidos no Brasil e substâncias cancerígenas.
“Você tem uma população que utiliza essa água muito mais do que a gente, no cotidiano. Se o rio está contaminado, a vulnerabilidade dessas comunidades é enorme”, afirma o pesquisador Francco Antonio Lima, autor do estudo. “Estamos falando de compostos que podem causar problemas endócrinos, malformações, doenças neurológicas e câncer. E alguns nem sequer têm uso autorizado no país. Se aqueles que são permitidos no país já tem um impacto na saúde, imagine os que são proibidos ou não autorizados?”
Os indígenas relatam que a contaminação já chega a uma das cerimônias chave do Kuarup, que é a pesca coletiva para alimentação dos visitantes. “Os jovens não pegaram quase nada esta manhã, e pequenos… Hoje, os peixes não estão mais como na época do meu pai. Agora tem muito veneno na água”, diz a pajé Amapulu Kamaiurá, que há 40 anos é a responsável pela orientação espiritual dos kamaiurá.
Ameaça à cultura
A vida no Xingu está profundamente ligada à água. Ela é transporte, alimentação e espiritualidade. Sua redução e contaminação comprometem não apenas a saúde física, mas também a continuidade dos rituais.
“Moramos na floresta e precisamos dela para manter nossa cultura viva. Se a floresta for destruída, a nossa cultura também será destruída. Porque é dela que vêm os materiais para as casas, a pintura corporal, os instrumentos musicais”, afirma o cacique Yawalapiti.
A cada ano, mais difícil se torna preparar o Kuarup, que exige fartura de alimentos e a presença de povos convidados. Ainda assim, a festa segue sendo realizada – e se converte em símbolo da resistência cultural diante da devastação ambiental.
O tronco enfeitado no centro da aldeia marca a última despedida, quando os mortos deixam de ser nomeados e os vivos encerram o luto com dança e luta. O ritual sintetiza a capacidade de renovação da cultura xinguana.
Diante das mudanças, líderes indígenas também levam a pauta ao cenário global. Em novembro, representantes do Xingu prometem estar na Conferência da ONU sobre o Clima em Belém (COP30) para cobrar governos e empresas.
“Estou me preparando para a COP. Quero que a voz dos indígenas seja ouvida pelo mundo”, afirma Yawalapiti.
O Kuarup, que atravessou séculos como testemunho da vida e da morte, pode agora se tornar também um retrato da crise climática. O ritual resiste, mas, como dizem seus guardiões, depende da floresta para sobreviver.