Qualquer pessoa de boa-fé não discordará do diagnóstico, das advertências e dos alertas do cientista Carlos Nobre, expostos neste artigo. O cientista prevê que o desmatamento a ser causado pelo asfaltamento da estrada Manaus-Porto Velho poderá levar à perda de um milhão de hectares de florestas, com o desaparecimento de 550 árvores e palmeiras por hectare.
Num cálculo simplista e conservador, se isso ocorrer, sem a mudança do modo de ocupar a Amazônia, provocará prejuízo de mais de 100 bilhões de reais. Não tanto, poderão retrucar os agentes da destruição, , mais interessados no agora. A faixa da rodovia que será desmatada não chegaria a tanto. Essa discussão leva a uma conclusão negativa: mesmo o mínimo, diante do ritmo da ocupação da estrada, já será um desastre.
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Estradas na Amazônia quase sempre significam desmatamento. A pavimentação da rodovia que liga Manaus a Porto Velho, a BR-319, além dos trechos já pavimentados próximos dessas capitais, pode ser a fagulha indesejada para transformar profundamente a região.
O maior remanescente preservado da floresta amazônica, a oeste da bacia do rio Madeira, pode se tornar uma nova fronteira de desmatamento. Em seguida, poderão surgir novas frentes de expansão agrícola, extração ilegal de madeira e ouro, grilagem de terras e violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
De fato, estudos do Imazon mostram que 95% do desmatamento ocorre até 5,5 quilômetros de cada lado de rodovias e vicinais. Assim, a pavimentação dos 885 quilômetros que conectam Manaus, capital do Amazonas, a Porto Velho, capital de Rondônia, tem o potencial de induzir o desmatamento em cerca de 1 milhão de hectares. Considerando que existem cerca de 550 árvores e palmeiras reprodutivas por hectare, o desmatamento dessa área poderia eliminar 550 milhões de plantas responsáveis por serviços ambientais essenciais, como a produção de frutos e sementes, e climáticos, como a formação de chuva e o estoque de carbono.
Ao mesmo tempo, o clima da região se tornaria ainda mais seco, aproximando a Amazônia do ponto de não retorno. A derrubada das árvores enfraquece o abastecimento hídrico dos rios voadores — correntes de vapor de água produzidas pela interação entre floresta e atmosfera, essenciais para irrigar o Cerrado, o Sul e o Sudeste do Brasil e partes da América do Sul. Sem essas 550 milhões de árvores e palmeiras, milhões de litros de vapor de água deixariam de ser lançados na atmosfera por dia.
A intensificação da seca também causa impactos ecológicos diretos. Nas regiões onde a seca já se intensificou, especialmente no sul do Pará e norte de Mato Grosso, a estação seca dura hoje cerca de cinco semanas a mais do que há 45 anos. Esse prolongamento ameaça ultrapassar o limiar que sustenta a floresta com copas fechadas. Quanto mais longa a estação seca, maiores são a mortalidade de árvores, as mudanças na composição de espécies e a propagação de incêndios.
A pavimentação da BR-319 pode tornar a região entre Manaus e Porto Velho mais quente. A floresta utiliza grande parte da energia radiativa do Sol para a evapotranspiração. Isso ajuda a resfriar o ar. Por outro lado, superfícies pavimentadas com asfalto, cimento e concreto absorvem essa energia, aquecendo a atmosfera. Nas regiões mais desmatadas da Amazônia, onde rodovias pavimentadas predominam, a temperatura média já aumentou 3ºC durante a estação seca, de junho a novembro.
As transformações ambientais ligadas à pavimentação da BR-319 podem acelerar o que observações de campo e modelos matemáticos indicam: grande parte da Amazônia pode se transformar em uma região degradada até 2050, sem possibilidade de retorno à floresta densa e rica em biodiversidade que conhecemos. Os impactos do ponto de não retorno podem comprometer o controle das emissões de gases de efeito estufa; afetar a produtividade agrícola dentro e fora da Amazônia; aumentar a desigualdade e a vulnerabilidade humana, especialmente entre populações amazônicas mais pobres; reduzir a diversidade biológica e cultural; e estimular um ciclo socioecológico degradado.
Existem ainda outros efeitos negativos da pavimentação da BR-319. O aumento dos incêndios está quase sempre associado ao avanço do desmatamento. Os incêndios florestais geram micropartículas de poluição do ar, causando doenças respiratórias em mais de 140 mil pessoas por ano na Amazônia brasileira. Isso tem contribuído para a redução da expectativa de vida de 2 a 4 anos nas regiões do Acre, Rondônia e sul do Amazonas e Pará.
Outra consequência preocupante é o aumento do risco de doenças. A degradação da floresta tem feito com que muitos vírus se tornem zoonoses. Pesquisas da Fiocruz e do Instituto Evandro Chagas já identificaram 48 zoonoses com potencial epidêmico na região. As febres oropouche e mayaro, que já se espalharam em surtos recentes, são exemplos de epidemias que podem se intensificar com a acentuada degradação de grandes áreas de florestas devido à pavimentação da BR-319.
A pavimentação da BR-319 representará uma grande fragmentação da floresta amazônica, dividindo o maior remanescente de floresta tropical biodiversa do planeta em duas partes: uma, já muito degradada, ao leste; e outra, a oeste, mais vulnerável à degradação humana.
Evitar esse cenário ainda é possível, mas exige ações imediatas, além de impedir a pavimentação da BR-319. Zerar o desmatamento, conter a degradação e interromper a abertura de novas estradas e vicinais são passos essenciais. Paralelamente, o Brasil precisa ampliar projetos de restauração florestal em grande escala, como o Arco da Restauração, capaz de recuperar milhões de hectares degradados.
O caminho sustentável para a Amazônia e suas populações passa pela implementação da sociobioeconomia, com saudáveis florestas em pé e rios fluindo. Isso inclui evitar toda infraestrutura que aumente significativamente o desmatamento, valorizar produtos da biodiversidade, apoiar os povos originários e as comunidades locais na criação de cadeias de valor sustentáveis, ampliar áreas de proteção ambiental e inserir o conhecimento Ind&iacu te;genas nas estratégias de desenvolvimento regional. O futuro da Amazônia e de suas populações depende de escolhas que mantenham a floresta viva.
A imagem que abre este artigo é de autoria de Marizilda Cruppe/Greenpeace e foi feita durante um sobrevoo na região do sul do Amazonas para monitorar desmatamento e focos de incêndio, em setembro de 2025.