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Entre o pânico tecnológico e a velha guerra fria, Kathryn Bigelow em “Prestes a Explodir” volta a perguntar a única coisa séria que evitamos questionar-nos: e se o fim do mundo não acontecer por maldade, mas por um erro de cálculo ao nível dos dispositivos nucleares? Para ver a partir de sexta 24 de outubro no streaming da Netflix.
Estrear neste momento um filme sobre Armagedão nuclear na Netflix, tem qualquer coisa de irónico. Kathryn Bigelow, 73 anos e zero paciência para anestesias morais, oferece-nos este “Prestes a Explodir”: um thriller sobre um míssil não identificado a caminho dos EUA e uma Casa Branca em curto-circuito. E esta? O gadget é-nos familiar — o cronómetro em contagem decrescente — mas o que interessa aqui não é a máquina; são os humanos que a tentam dominar enquanto tremem. Bigelow nunca filmou “coisas”: neste caso filma sistemas, falhas e pessoas normais apanhadas no meio de uma crise nuclear. E lembra-nos, em registo cru, que o sofá nunca foi propriamente um abrigo antinuclear.


A pergunta que ninguém faz
A premissa de “Prestes a Explodir” é simples: um objeto é identificado nos sofisticados radares, vindo de origem incerta e logo se preparam respostas em cadeia. Mas o filme parte para outro sítio: “e se o fim do mundo não for uma distopia longínqua, mas uma sucessão de micro-erros, rotina e arrogância?” É aqui que Bigelow é cirúrgica. A sua famosa frase — “o nosso mundo é combustível” — não é um soundbite para o trailer de um filme; é um diagnóstico sobre a nossa normalização do impensável. Vivemos com milhares de ogivas nucleares no planeta como quem vive com um aquecedor defeituoso: dizemos que não vai rebentar, até um dia rebentar.
VÊ TRAILER DE “PRESTES A EXPLODIR”
Bigelow, a general pacifista
A realizadora regressoou ao Festival de Veneza, em setembro passado, com este “Prestes a Explodir” e com a autoridade de quem conhece bem o cheiro da pólvora e o peso das decisões que ninguém quer assinar. “Estado de Guerra” (2008) expôs a dependência da adrenalina e o vício do risco; “00:30 – A Hora Negra” (2012) desvendou o labirinto moral da caça a Bin Laden. Agora, o alvo é invisível, talvez fantasma e por isso talvez ainda mais assustador. Bigelow é frequentemente tratada como um “general de filmagens”, mas o que ela faz não é militarizar o cinema; pelo contrário é civilizar a conversa sobre a violência organizada, abrindo espaço para pensamento num terreno minado de certezas.
O elenco, a máquina e a falibilidade
Idris Elba assume a presidência dos EUA com gravidade e cansaço; Rebecca Ferguson, como analista, personifica a lucidez que o protocolo que insiste em abafar a situação. À volta deles, assessores, militares e técnicos. Gente treinada, competente, mas cansada e impotente perante os factos e com tudo “Prestes a Explodir”. Bigelow sublinha o óbvio que esquecemos: competência não é infalibilidade. O arsenal é uma arquitetura humana, logo falível; as redundâncias reduzem o risco, não o eliminam. O filme desmonta a fantasia da omnipotência com uma série de portas semi-fechadas: informações incompletas, leituras contraditórias, egos com acesso a códigos.


O relógio dos anos 60 no pulso de 2025
Há em “Prestes a Explodir” uma ponte melancólica com a infância da realizadora, a época dos exercícios “duck and cover”, do debaixo da secretária se estoirar a crise dos mísseis de Cuba. A diferença é que, em 2025, já não temos secretárias, mas ecrãs. O telemóvel notifica tudo, menos aquilo que realmente interessa. A guerra nuclear não dá bons clips e, portanto, sai do feed. Bigelow faz o inverso: sustém a imagem, alonga a decisão, expõe a ansiedade. A tenção não vem de explosões, mas de reuniões, silêncios, assinaturas que ninguém quer assumir. É cinema de processo, feito com a gramática da urgência.
Anatomia de um sistema que não admite dúvidas
O coração do filme é uma sala de controlo da situação crise, onde a dúvida é tratada como ameaça. E, no entanto, é a única coisa sensata. Quem disparou? De onde? Com que intenção? O manual pede respostas rápidas; a realidade devolve probabilidades. A política quer certezas para a câmara; a estratégia precisa de margens de erro. O choque é inevitável. Bigelow filma este atrito com economia: olhares, respiradores, dedos que pairam sobre teclas. Em “Prestes a Explodir”, o espetáculo é a hesitação e nós, espectadores, sentimos o peso físico do “talvez” da incerteza.


O fantasma americano e o espelho global
Há leituras fáceis deste filme: a América a falar de si mesma, outra vez. Porém, Bigelow evita caricaturas: não há sósias óbvios, não há discursos de campanha a mascarar propaganda. O que há é um mecanismo de poder que podia estar noutro hemisfério. A obsessão americana é só o cenário mais ruidoso de um vício internacional: o de acreditar que o botão vermelho é a solução adulta para problemas infantis. O filme é americano no passaporte, mas global na sua radiografia.
A ética do thriller
Bigelow continua a praticar um cinema adjacente ao jornalismo: pesquisa, detalhe, encenação de procedimentos. Mas recusa a encenação moralista. A representação não é endosso, e a crítica nasce do olhar atento. Aqui, o thriller não é parque de diversões: é uma ferramenta cívica. A sua brutalidade é de outra espécie: não está nos estilhaços, está no calafrio de reunião onde a palavra “retaliação” é dita como quem pede um café.


O espectador como última linha de defesa
A pergunta final é desconfortável: o que fazemos nós com isto? Fechamos o streaming e seguimos para a série fofinha, como quem muda de canal numa evacuação? Ou engolimos a ansiedade e levamos o incómodo para a praça pública? “Prestes a Explodir” é menos um filme para se “gostar” e mais um exame de consciência. A casa é sim de dinamite, e moramos todos nela. A diferença entre espetáculo e catástrofe pode estar no segundo a seguir ao genérico.
JVM
“Prestes a Explodir” — Análise
Conclusão:
“Prestes a Explodir” é menos um filme para gostar e mais um teste de stress ao nosso conforto. Kathryn Bigelow troca o fogo-de-artifício pela hesitação e lembra que os sistemas que “protegem o mundo” são feitos por pessoas cansadas, competentes e, portanto, não menos falíveis. O verdadeiro susto não é a ogiva: é o protocolo, o ego, o ruído e a pressa. Se o cinema ainda serve para alguma coisa, é para nos tirar do modo silêncio. Desligar o filme e continuar a discutir o tema, — nas urnas, nos jornais, nas conversas — é a única “cena pós-créditos” que interessa.
Pros
O melhor: a tensão precisa e cerebral com que Kathryn Bigelow filma o colapso do poder: suspense sem pirotecnia, só reuniões, olhares e hesitação; Idris Elba e Rebecca Ferguson impõem-se num duelo entre autoridade e lucidez, num filme onde competência não é sinónimo de controlo.
Cons
O pior: a sua frieza metódica, que pode afastar quem procura emoção imediata; o excesso de jargão e a ação confinada à sala de situação tornam o filme denso e fechado sobre si próprio; A ambiguidade é coerente com o tema, mas frustra quem ainda espera uma resposta simples ou um culpado claro.
