Às margens do Córrego Novo Lajinha, na Comunidade Quilombola de Mangueiras, na região Norte de Belo Horizonte, a imagem de Iemanjá – orixá mãe dos mares e das águas – simboliza o pedido de proteção ao curso d’água. Por quase dois séculos, ele sustentou a vida e a relação com o sagrado de famílias que se estabeleceram na região antes mesmo do surgimento do Curral del-Rei, arraial que deu origem à capital mineira. No entanto, há quase duas décadas, suas águas tornaram-se impróprias para o consumo e para os rituais de banho de folhas, manifestação de fé da comunidade, formada por 32 famílias. “O córrego é o nosso maior bem. A partir da água dele podemos desenvolver, entregar frutos, manter nossa ancestralidade e ter vida”, relata a mãe de santo Ione Maria de Oliveira, de 52 anos.

O córrego, cercado por uma área verde de 19,9 hectares, onde os moradores convivem em harmonia com árvores frutíferas nativas e animais, passou a sofrer contaminação por causa do crescimento desordenado da cidade e por obras de urbanização nos arredores do quilombo – um fenômeno que avançou na última década. Segundo a comunidade quilombola, as casas do bairro Novo Lajedo utilizam fossas, o que resultou na poluição do solo e, consequentemente, das águas. Soma-se a isso o descarte de esgoto no curso d’água, proveniente até mesmo de ligações clandestinas nas residências de outros dois bairros próximos, o Lajedo e o Tupi. Uma condição que se instaurou nos últimos anos e que motivou audiências públicas em órgãos como a Câmara Municipal de Belo Horizonte. 

Leia a reportagem especial “Quando a água chega?”

“Temos três nascentes que formam o córrego, e todas elas estão sujas, tomadas por coliformes fecais. É uma situação degradante, e isso se torna uma violação se a gente pensar que, por quase 200 anos, o córrego foi o responsável por abastecer seis gerações que aqui viveram”, conta a vice-presidente da Associação Quilombola de Mangueiras, Tatiane de Oliveira, de 37 anos. Essa condição, segundo ela, coloca em risco a existência do quilombo, que, em 2015, foi tombado como Patrimônio Histórico e Imaterial de Belo Horizonte. “Tenho um filho de 18 anos e, durante boa parte da vida dele, consumiu água das nascentes que temos. Ele só foi experimentar a água da Copasa quando tinha 7 anos. Então, perder os nossos costumes, nossa essência, é também colocar em risco quem somos”, avalia.

Tatiane de Oliveira, da Associação Quilombola de Mangueiras, já denunciou poluição do Córrego Lajinha | Daniel de Cerqueira / O TEMPO

Com a contaminação do curso d’água, os rituais de banho de folhas tiveram de ser adaptados. A água utilizada para o culto religioso passou a ser aquela fornecida pela Copasa, que começou a atender a comunidade há cerca de 20 anos. “Aprendemos a alimentar o nosso corpo e o sagrado pelo contato com o rio. Sem essa possibilidade, nossa existência é impactada. Esse é um direito nosso, que está sendo violado”, afirma Ione. A degradação também impediu as crianças de brincar no córrego, e o forte cheiro de esgoto se tornou um incômodo diário para as famílias. “É um cheiro ruim e intenso que entra em nossas casas. Na minha residência, por exemplo, a cozinha fica próxima do córrego, e o odor do esgoto incomoda. A quantidade de mosquitos é outro problema”, acrescenta.

Os moradores já denunciaram a situação à Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e também ao governo de Minas. Eles, no entanto, temem que o avanço dos empreendimentos imobiliários nos bairros próximos possa dificultar o atendimento das necessidades da comunidade. “Hoje já temos casas em áreas do quilombo. Tivemos que colocar uma cerca para tentar impedir que ocupassem ainda mais espaço. Nesta semana, o governador esteve no Novo Lajedo para acompanhar as ações do Programa Moradas Gerais, que reforma casas e investe em infraestrutura na região. Mas são residências em uma área que era nossa. Então, alguém precisa olhar por nós”, completa Ione.

A Prefeitura de Belo Horizonte disse, em nota, que “a importância da recuperação ambiental do Córrego Lajinha diz respeito, entre outros, à existência, nessa bacia hidrográfica, da Comunidade Quilombola Mangueiras, que utiliza as águas desse córrego em seus rituais de fé”. “O Quilombo Mangueiras é atendido por sistema de esgotamento sanitário. Porém, o Córrego Lajinha encontra-se poluído pelo lançamento de esgotos oriundos de parte do assentamento Novo Lajedo, que não é plenamente atendido pelas infraestruturas de esgotamento sanitário. A Copasa está implantando redes coletoras no assentamento, mas ainda existem dificuldades para a solução total do problema, especialmente em áreas pertencentes ao próprio quilombo, que foram ocupadas. Daí a importância da realização das obras no âmbito do Programa Periferia Viva, objetivando a redução do nível de degradação ao qual o Córrego Lajinha está submetido, o que garantirá a possibilidade do pleno exercício da religiosidade dessa população tradicional”, enfatizou.

Ainda segundo a PBH, a Secretaria Municipal de Política Urbana realizou, em agosto, vistoria no local para verificar possível contaminação das nascentes. “Cabe ressaltar que, para qualquer licenciamento de empreendimento imobiliário deve-se emitir a Informação Básica para Edificações (IBED), que aponta dados que um construtor deve se atentar, tais como: informações sobre parâmetros urbanísticos e ambientais a serem respeitados, bem como sobre Patrimônio Cultural, indicando inclusive se o empreendimento encontra-se em área de impacto de um bem reconhecido como Patrimônio Cultural”, disse em nota. Oficialmente, não há demanda de análise de empreendimento imobiliário no entorno do Quilombo Mangueiras junto ao poder público.

 

 

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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