A poluição ambiental é dos principais problemas da sociedade contemporânea, afetando diretamente a saúde humana, o equilíbrio ecológico e o bem-estar coletivo. O crescimento urbano desordenado, a industrialização e o aumento do consumo têm acentuado a degradação ambiental, exigindo respostas eficazes do Direito. Nesse contexto, o artigo 54 da Lei nº 9.605/1998 tipifica o crime de causar poluição que resulte ou possa resultar em danos à saúde humana, estabelecendo um marco normativo essencial para a tutela penal do meio ambiente.
Freepik

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 2.205.709/RS, sob o rito dos recursos repetitivos, consolidou entendimento sobre a natureza do crime de poluição previsto na primeira parte do artigo 54, caput, da Lei 9.605/1998. O tribunal estabeleceu que o delito possui natureza formal, bastando, para sua ocorrência, a potencialidade de dano à saúde humana, comprovada por meios idôneos, sem necessidade de perícia técnica obrigatória.
Essa decisão, embora tenha se originado de um caso de poluição sonora, possui alcance mais amplo, repercutindo sobre todas as modalidades de poluição — atmosférica, hídrica, do solo etc. — e provocando relevantes debates acerca dos limites da prova penal e da segurança jurídica.
Tratamento jurídico da poluição ambiental e o art. 54 da Lei 9.605
O artigo 54 da Lei de Crimes Ambientais dispõe:
“Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”
A redação do dispositivo revela uma estrutura típica de crime formal e de perigo — isto é, a configuração não exige prova de dano efetivo (por exemplo, morte/lesão), bastando que a conduta possua aptidão para resultar em dano à saúde. O verbo “causar” e a expressão “níveis tais” não deixam dúvidas de que é indispensável demonstrar a intensidade do dano ou sua potencialidade lesiva. A alteração adversa do ambiente que não seja capaz de causar os malefícios previstos na norma, é simples infração administrativa.
A discussão consiste em determinar como se comprova essa “potencialidade de dano”: seria imprescindível um laudo pericial, ou bastariam outros meios probatórios, como testemunhos, relatórios técnicos ou documentos administrativos?
Tese firmada pelo STJ
O julgamento do REsp 2.205.709/RS, o STJ, relatado pelo ministro Joel Ilan Paciornik, fixou a seguinte tese repetitiva:
“O delito previsto na primeira parte do artigo 54, caput, da Lei 9.605/98 possui natureza formal, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana para a configuração da conduta delitiva, bastando a comprovação, por meios idôneos, da potencialidade de dano, não se exigindo, portanto, a realização de perícia.”
Spacca

O precedente representa um marco na jurisprudência penal ambiental. O tribunal reconheceu que o crime de poluição, na forma simples, não exige a efetiva produção de dano, bastando o risco concreto à saúde humana. A corte também afastou a exigência de perícia, desde que existam outros meios probatórios idôneos capazes de demonstrar a potencialidade lesiva da conduta.
Alcance da decisão: além da poluição sonora
Embora o caso concreto tenha versado sobre poluição sonora, a tese firmada não se restringe a esse tipo específico. A decisão possui alcance geral, aplicando-se igualmente às hipóteses de poluição atmosférica, hídrica, do solo etc., pois o artigo 54 trata de “poluição de qualquer natureza”.
Ressalte-se, contudo, que parte da doutrina sustenta que, muito embora o artigo 54 da Lei nº 9.605/98 se refira à “poluição de qualquer natureza”, “a poluição sonora causada pela emissão excessiva de sons e ruídos não se presta à conformação típica na lei ambiental, por não alcançar bem jurídico nela tutelado” [1]. A conduta, assim, poderia caracterizar mera contravenção penal de perturbação do sossego alheio (artigo 42 da Lei de Contravenções Penais).
De todo modo, o STJ consolidou a interpretação de que, quando o som atinge níveis potencialmente lesivos à saúde humana, a conduta se enquadra no artigo 54 da Lei 9.605/98.
Controvérsia sobre a perícia e os riscos à segurança jurídica
A decisão do STJ, embora bem-intencionada ao evitar formalismos excessivos, suscita preocupações quanto à segurança jurídica. A dispensa da perícia pode gerar incerteza sobre quais níveis de poluição são realmente capazes de causar danos à saúde, sobretudo em contextos técnicos complexos.
O ponto crítico é a expressão “níveis tais”, que remete a uma avaliação técnica e mensurável. A mera inobservância de regras administrativas ou padrões técnicos não implica automaticamente poluição capaz de afetar a saúde humana. Por exemplo: um restaurante que ultrapasse ligeiramente o limite de ruído permitido em horário comercial pode causar incômodo, mas dificilmente um dano à saúde. Do mesmo modo, uma indústria que emita partículas um pouco acima do limite legal, esporadicamente, pode estar em infração administrativa, sem que isso represente, necessariamente, risco concreto à saúde pública.
Esses exemplos demonstram que a violação de uma norma técnica não se confunde com o crime de poluição ambiental. A distinção entre desconforto, infração administrativa e efetivo risco à saúde, ainda que abstrato, é essencial para a aplicação proporcional e justa do Direito Penal.
Meios idôneos de prova
O ministro Rogério Schietti, no julgamento do precedente, reconheceu a necessidade de cautela probatória. Embora o crime seja formal, a potencialidade de dano deve ser demonstrada de modo objetivo e técnico, ainda que por outros meios que não a perícia judicial. Relatórios de órgãos ambientais, autuações técnicas, medições documentadas e provas testemunhais especializadas são exemplos de meios idôneos que podem suprir a perícia.
Portanto, o STJ não dispensou a prova técnica, mas apenas afastou a exclusividade do laudo pericial. Essa distinção é crucial: a condenação penal não pode se basear em meras percepções subjetivas de incômodo ou desconforto social, sob pena de violação ao princípio da legalidade, da lesividade e da fragmentariedade.
Conclusão
A decisão do STJ no REsp 2.205.709/RS é importante para a consolidação da jurisprudência penal ambiental ao reafirmar a natureza formal e de perigo do crime de poluição. Contudo, a dispensa da perícia, se interpretada de forma ampla, gera insegurança jurídica e banaliza o tipo penal.
A caracterização do delito exige meios idôneos de comprovação da potencialidade lesiva, capazes de evidenciar objetivamente que a conduta atingiu “níveis tais” de poluição com aptidão para causar danos à saúde humana. Essa foi, aliás, a preocupação central do ministro Rogério Schietti, que enfatizou a necessidade de provas técnicas sérias e consistentes.
O equilíbrio entre a efetividade da tutela penal ambiental e a preservação das garantias processuais constitui o verdadeiro desafio que o precedente do STJ deixa à doutrina e à jurisprudência: punir a poluição sem transformar o Direito Penal em mero instrumento de repressão de incômodo e desconforto social.
[1] MARCÃO, Renato Flavio. Crimes ambientais (Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.605, de 12-2-1998) — 3. ed. — revista e atualizada de acordo com a Lei n. 13.052/2014 / Renato Marcão — São Paulo : Saraiva, 2015. Edição do Kindle. Locais do Kindle 8959-8961.