O Brasil é reconhecido por sua vasta biodiversidade e também pelo título de um dos maiores consumidores globais de agrotóxicos. Essa contradição alimenta um desafio crescente e perigoso para a saúde: a contaminação de plantas medicinais por produtos químicos e o impacto desse uso para as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (Pics).

Foi este o alerta levado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) ao 3º Congresso Mundial de Medicina Tradicional, Complementar e Integrativa (3º WCTCIM), realizado neste mês de outubro na cidade do Rio de Janeiro. Para Vânia Leite, conselheira nacional de saúde que integra a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena do CNS, a medicina indígena e o uso tradicional de fitoterápicos são impactados negativamente pelo excessivo uso de veneno no solo, comprometendo a segurança e a eficácia dos tratamentos previstos no âmbito das Pics.

Durante sua participação no 3º WCTCIM, a conselheira levantou uma preocupação fundamental sobre como muitas plantas medicinais, especialmente aquelas cultivadas próximas a lavouras convencionais, estão sujeitas à contaminação por agrotóxicos. “Isso compromete sua segurança de uso e representa um risco direto à saúde da população que depende dessas plantas”, denunciou Vânia.

Ascom CNS
Ascom CNS

A gravidade do tema é amplificada pelo cenário nacional do uso de pesticidas. Dados levantados pela WWF-Brasil apontam que o uso de agrotóxicos no nosso país praticamente dobrou entre 2010 e 2021. Entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação por agrotóxicos de 56.870 pessoas, com estimativas de que a subnotificação seja da ordem de 1 para 50 casos, o que torna a exposição a essas substâncias uma séria questão de saúde pública.

A intoxicação por agrotóxicos, seja aguda ou crônica, tem sido associada cientificamente a uma série de agravos à saúde humana. Trabalhadores rurais, em particular, estão sujeitos a danos nos sistemas nervoso, respiratório, reprodutivo e endócrino, além do maior risco para câncer. A população em geral também está suscetível à exposição múltipla por meio do consumo de alimentos e água contaminados, e a presença de agrotóxicos já foi detectada em amostras de sangue, urina e até leite materno.

Quando as plantas medicinais, que deveriam ser fontes de cura, absorvem esses resíduos de agrotóxicos devido à proximidade de lavouras ou à dispersão ambiental, o risco é dobrado. O potencial terapêutico é comprometido e a ingestão pode levar à exposição inadvertida a substâncias tóxicas.
Sistema nacional para plantas medicinais

A carência de um sistema nacional eficaz para monitorar e fiscalizar a comercialização e coleta de plantas medicinais, especialmente as de extrativismo na natureza, agrava o problema da segurança, segundo Vânia. Embora normativas da Anvisa exijam a análise de resíduos de agrotóxicos em fitoterápicos, a dificuldade de garantir a qualidade na cadeia produtiva, sobretudo nas plantas colhidas em ambientes rurais sujeitos à deriva de pesticidas, permanece.

Este cenário ameaça diretamente a preservação do conhecimento tradicional, frequentemente embasado no uso de plantas colhidas na natureza. Relatos de participantes do Congresso à conselheira reforçaram a urgência do monitoramento e fiscalização, descrevendo como a contaminação tem afetado a qualidade e a disponibilidade de ervas tradicionalmente utilizadas em suas comunidades. A necessidade de transição para um modelo de produção mais seguro e sustentável se torna urgente, “a partir do desenvolvimento de formas de cultivo agroecológico e de cadeias de produção seguras”, destacou a conselheira.

Jéssica, terapeuta integrativa que trabalha com fitoterapia e plantas medicinais, foi uma das participantes que relataram as dificuldades de quem faz cultivo e uso dessas plantas em regiões de área rural. “Tenho que cultivar em locais fechados pois dessa forma não há risco de contaminação. Os aviões sobrevoam pulverizando agrotóxicos. Como vamos levar saúde e plantas sadias se estamos contaminadas pelo veneno do agro?” questiona a profissional.

Garantir a proteção das áreas de cultivo e coleta de plantas medicinais, especialmente em territórios tradicionais, apoiar tecnicamente e financeiramente a produção agroecológica e a certificação participativa, que oferecem alternativas ao uso de agrotóxicos, implementar zonas livres de agrotóxicos em áreas estratégicas para o uso de plantas medicinais e fitoterápicos e ampliar a informação para produtores e usuários sobre o uso correto das plantas e os riscos da contaminação são algumas das ações encaminhadas e sugeridas entre os participantes do evento.

Em um país onde a biodiversidade e os saberes ancestrais são pilares da cultura e da saúde, a proteção das plantas medicinais contra a contaminação por agrotóxicos é, para além de uma questão de saúde pública, também uma questão de soberania cultural e ambiental. “É preciso que o poder público e a sociedade garantam que a natureza continue a ser fonte de cura, e não de risco”, finalizou Vânia Leite.

Natália Ribeiro
Conselho Nacional de Saúde

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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