Por Danielle Monteiro
O relatório ‘Estado dos Recursos Hídricos Globais 2024’, da Organização Meteorológica Mundial (OMM), vinculada à ONU, apontou que o planeta está entrando em uma era de extremos climáticos cada vez mais severos. Conforme apontam estudos, o quadro de crescente insustentabilidade em relação à água está ligado a dois aspectos: o aumento desses desastres climáticos (secas, enchentes) e a contaminação dos cursos d´água. O que tem provocado esses dois fenômenos no mundo?
Paulo: Eles são resultado de diferentes ações antrópicas. Por um lado, a humanidade vem lançando grandes quantidades de gases de efeito estufa na atmosfera desde a Revolução Industrial. O acúmulo crescente desses gases na atmosfera resultou no aumento da temperatura global, o que, por sua vez, causou uma série de efeitos no sistema climático do planeta, inclusive alterações do ciclo hidrológico, tornando-o mais instável e sujeito à ocorrência de eventos extremos. Segundo este relatório, apenas um terço das bacias hidrográficas no mundo apresentaram vazões dentro da normalidade em 2024, comparado com dados de uma série histórica. Os outros dois terços apresentaram vazões muito acima ou muito abaixo da faixa de normalidade, sendo 2024 o sexto ano consecutivo apresentando este padrão. Por outro lado, o contínuo lançamento de diversos poluentes no ambiente tem comprometido a qualidade de diversos sistemas, inclusive ecossistemas aquáticos, reduzindo a biodiversidade e impactando seus serviços ecossistêmicos, tornando-os inadequados para o abastecimento humano, por exemplo.
Como a falta de saneamento agrava a escassez hídrica em períodos de secas severas?
Paulo: A falta do serviço de coleta e tratamento de esgotos sanitários resulta no seu lançamento no ambiente, muitas vezes contaminando corpos hídricos, que se tornam inadequados para o consumo humano, reduzido assim, as alternativas de abastecimento para as populações, sobretudo em áreas com escassez hídrica. Já quando o serviço de abastecimento de água de consumo é ineficiente, podemos ter perdas expressivas de água potável ao longo da rede de distribuição. Por exemplo, segundo o último relatório do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa), cerca de 46% da água potável distribuída na região nordeste é perdida ao longo da rede.
O que pode ser feito para mitigar os impactos negativos das grandes secas e enchentes?
Paulo: Medidas de gestão dos recursos hídricos de forma a garantir a segurança hídrica nas diferentes Regiões Hidrográficas. Isso inclui o monitoramento do volume dos recursos hídricos disponíveis, das demandas por água e, ainda, a avaliação das tendências ao longo do tempo, o que permitirá o planejamento dos múltiplos usos dos recursos hídricos. Alguns instrumentos de gestão incluem o cadastro de usuários dos recursos hídricos, o controle da concessão de outorga de uso e a cobrança pelo uso e fiscalização do uso pelos usuários. Além disso, a construção de planos de recursos hídricos e enquadramento de corpos d’água permitem o planejamento do uso racional dos recursos hídricos.
Qual o impacto da seca e escassez hídrica na saúde de populações de comunidades que vivem em áreas distantes e isoladas? E que ações governamentais poderiam contribuir para a solução do problema?
Paulo: A falta de água em quantidade e qualidade adequadas impacta a qualidade de vida e, consequentemente, a saúde, mais que qualquer outro fator. Diversos agravos à saúde, denominados genericamente de Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado, podem ocorrer ou se agravar em situações de secas. Esses agravos à saúde vão desde as típicas doenças de veiculação hídrica (ex: diarreias, hepatite A) até doenças relacionadas à falta de higiene (micoses, tracoma) ou resultado do armazenamento inadequado de volumes de água obtidos de fontes alternativas, muitas vezes inseguras (ex: dengue, zika).
Que políticas públicas podem ser adotadas para melhorar a qualidade da água e ampliar o acesso à água potável?
Paulo: O setor Saúde, nos seus três níveis, é responsável pela vigilância da qualidade da água para o consumo humano, conforme a Portaria 888/2021. Portanto, as secretarias municipais de saúde são responsáveis, entre outras ações, pelo cadastramento de todas as fontes de água de consumo nos seus territórios, bem como de fiscalizar os prestadores de serviços de saneamento e o cumprimento dos padrões de potabilidade definidos na legislação. Esta vigilância está estruturada por meio do Programa Vigiagua, cujo principal instrumento é o Sisagua, sistema onde os dados de qualidade de água, tanto da vigilância quanto do controle, são depositados. A partir das informações coletadas no sistema, o poder público define as ações necessárias para garantir o abastecimento da população brasileira com água segura. Outra política diretamente associada à ampliação do acesso à água potável é a Política Nacional do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007 atualizada pela Lei 14.026/2020), que tem como objetivo a universalização do acesso em todo território brasileiro.
Como as iniquidades sociais agravam esse cenário de crise hídrica?
Paulo: Diversos estudos demonstram que existe uma relação direta entre a condição socioeconômica e a raça com o acesso aos serviços de saneamento. Populações de menor poder aquisitivo, negras e periféricas, têm acesso desproporcionalmente menor aos serviços de abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgoto e gestão de resíduos sólidos. Assim, em situações de crise hídrica, essas populações vulnerabilizadas terão mais dificuldade de obter água em quantidades e qualidade adequadas. Um exemplo ocorreu nas áreas favelizadas do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19. Além disso, em um sistema capitalista, quando um recurso se torna escasso (ex: água potável) seus preços costumam subir bastante, deixando os mais pobres sem acesso ao recurso (i.e. exclusão sanitária).
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