A ingestão de peixes contaminados pela poluição do Rio Poti pode estar associada ao desenvolvimento de câncer e outras doenças graves nos moradores dos distritos de Ibiapaba e Oiticica, no município de Crateús, no Ceará.

É o que indica um estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC) de Crateús, em parceria com o Laboratório de Avaliação de Contaminantes Orgânicos (Lacor) do Instituto de Ciências do Mar (Labomar-UFC).

De acordo com a pesquisa, 22% das espécies de peixes coletadas na região apresentaram valores inaceitáveis de risco de câncer (RC), de acordo com critérios da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (USEPA)

Veja também


O relatório também sugere que a ingestão de apenas 150 gramas por dia de filé do animal contaminado pode inferir um alto risco à saúde humana. Além de poluentes com potencial cancerígeno, foram encontrados contaminantes associados a riscos neurológicos e endócrinos em quantidades significativas nos músculos dos peixes coletados. 

Segundo o estudo, as espécies que apresentaram altos valores de RC foram branquinha, curimatã, piranha, tucunaré, piau, bodó e cangati, sendo as três últimas as que indicaram as taxas mais elevadas. 

A pesquisa foi iniciada em agosto de 2024, após moradores do distrito de Ibiapaba relatarem encontrar, em 2023, peixes com olhos aparentemente inflamados e “esbugalhados”

Rio Poti visto de cima

Legenda:
Rio Poti visto de cima na zona urbana do município de Crateús

Foto:
Manoel Marquez

Os resultados aqui informados foram apresentados no trabalho de conclusão de curso da discente Ana Clara Rosendo Sousa, natural de Crateús e hoje Engenheira Ambiental e Sanitarista formada pela UFC.

Apesar do alerta, a coordenadora do Núcleo Integrado de Pesquisa e Inovação (NIPI) da UFC em Crateús e orientadora do trabalho, Janaina Lopes Leitinho, esclarece que a alimentação não constitui, obrigatoriamente, fator determinante para a incidência de câncer na região, uma vez que a doença pode ser causada por diferentes fatores

Agricultura é uma das principais fontes dos poluentes do Rio Poti

O relatório leva em consideração dois pontos do rio: no Distrito de Ibiapaba, localizado no entorno da Área de Proteção Ambiental (APA) do Boqueirão do Poti, e no Distrito de Oiticica, localizado dentro da APA.

Mapas descrevendo os pontos de coleta, o percurso do rio e o desmatamento das margens

Legenda:
Pontos de coleta, o percurso do rio e o desmatamento das margens

Foto:
Isadora Brandão

Segundo o estudo, a área de Ibiapaba, localizada fora da APA do Boqueirão do Poti, apresentou as maiores concentrações de contaminantes nos peixes analisados. A região apresenta maior urbanização em relação ao distrito de Oiticica e vasta área dedicada à agricultura, o que, para a pesquisa, reforça a influência das práticas agrícolas e o uso intensivo de agrotóxicos na contaminação dos recursos hídricos e da biota aquática.

O impacto da agricultura também é salientado por Janaina. Ela explica que, na luta contra a seca, as poucas chuvas, as altas temperaturas e as pragas, o uso de pesticidas, as queimadas e o plantio cada vez mais próximo às margens do Rio Poti, em busca de solo fértil e irrigação facilitada, ganham espaço na agricultura familiar de subsistência presente em Crateús. 

Nesse sentido, o cenário favorece o desmatamento da mata original e o transporte dos contaminantes para o leito do rio, revelando uma realidade complexa e de difícil solução.  

“Nós já tínhamos verificado até contaminação de minério de ferro. Nós temos uma poluição de diversas fontes. No Ceará, especificamente, o Rio Poti não tem mais fluência. Na época da seca ele forma umas lagoas, que viram os oásis desses peixes e a fonte de alimentação do sertanejo, já que no segundo semestre a agricultura é inviável por conta do sol muito forte e da pouca água. Quando você tá pescando, não tem como inferir qual peixe está contaminado e qual não está, então é um risco pra saúde das pessoas”, ressalta a pesquisadora. 

Distrito de Oiticica Dentro da APA Boqueirão do Poti

Legenda:
Distrito de Oiticica dentro da APA Boqueirão do Poti

Foto:
Janaina Lopes Leitinho

No entanto, apesar da área analisada no distrito de Ibiapaba, localizado fora da APA do Boqueirão do Poti, ter apresentado um nível de poluição mais elevado, Janaina destaca que os índices de contaminantes dentro e fora da APA são semelhantes. “São uns 20 e pouco quilômetros de distância. Ou seja, a poluição não tá conseguindo se dissipar até chegar lá”, alerta. 

Assim, na visão da especialista, é necessário um projeto de curto e longo prazo desenvolvido por uma equipe multidisciplinar para tentar mitigar esses poluentes. 

“A educação é o primeiro passo. Ensinar o hábito de selecionar o lixo, descartar do jeito certo, não desmatar, várias ações diferenciadas. Além da educação para esse sertanejo, a gente tem que dar subsídio para eles entenderem o que é uma agricultura sustentável, o que pode ser feito para recuperar essa nascente, esse solo, até onde eu posso usar um pesticida, que tipo de pesticida usar e, ao mesmo tempo, usufruir dos frutos da agricultura”


Janaina Lopes Leitinho

Coordenadora do NIPI da UFC em Crateús e orientadora do trabalho

 

No relatório, as causas da poluição do rio são associadas a:

  • Resíduos sólidos descartados de forma irregular na calha do rio;
  • Lixiviação do solo e condensação dos vapores dos mesmos sobre as águas;
  • Cinzas provenientes da queima de resíduos. 

Para o estudo, o cenário de mudanças climáticas e elevadas temperaturas contribui para que os vapores sejam os maiores vetores de contaminação por poluentes orgânicos. Outro ponto de alerta levantado é a falta de coleta seletiva no distrito de Oiticica, o que agrava a situação.  

Pessoas posando para foto uma do lado da outra ao lado de casas em Crateús

Legenda:
Equipe da coleta

Foto:
Rivelino Cavalcante

Inseticidas foram os poluentes mais encontrados nos peixes

Os poluentes identificados foram os Bifenilos Policlorados (PCBs) e Pesticidas Organoclorados (OCPs), que apresentam potencial cancerígeno, e os Éteres Difenílicos Polibromados (PBDEs) e Piretróides (PPs), associados a riscos neurológicos e endócrinos

No estudo, cada classe de contaminantes é descrita da seguinte forma: 

  • PCBs: oriundos de plastificantes e tintas;
  • OCPs: pesticidas sintéticos utilizados principalmente na agricultura e no controle de vetores de doenças;
  • PBDEs: derivados dos retardantes de chama adicionados a plásticos, têxteis, eletrônicos e espumas;
  • PPs: inseticidas derivados dos piretroides, amplamente usados na agricultura no controle de vetores.

Pessoa em laboratório tratando e analisando amostras

Legenda:
Tratamento de amostras

Foto:
Ana Clara Rosendo

De acordo com os resultados, os PPs foram a classe de contaminantes predominante nos músculos dos peixes, seguidos pelos OCPs, PBDEs e PCBs. O relatório alerta, ainda, para a presença de PCBs e OCPs entre os compostos analisados, uma vez que as substâncias seriam conhecidas pela persistência no meio ambiente e bioacumulação na cadeia  alimentar.

O acúmulo dos poluentes nos peixes acontece ao longo da cadeia trófica, à medida que os animais se alimentam de sedimentos, partículas suspensas e matéria orgânica contaminados.

Prejuízos do consumo de peixes contaminados se acumulam no organismo ao longo de anos 

O médico sanitarista e gestor em saúde, Álvaro Madeira Neto, explica que as moléculas encontradas são poluentes orgânicos persistentes. Ao entrarem no corpo humano por meio do alimento, as partículas atravessam o intestino e passam a circular no sangue, podendo se depositar em estruturas como o fígado, o tecido nervoso e a gordura corporal

O processo crônico e cumulativo pode levar, por exemplo, a uma desregulação hormonal e interferência na tireoide, a agressões ao fígado e ao sistema imune e a impactos em questões cognitivas e comportamentais

Segundo o especialista, não é possível definir o tempo exato do surgimento das primeiras sequelas, mas é possível garantir que o risco de desenvolver câncer e outras doenças se acumula ao longo dos anos em casos de exposição contínua aos poluentes

“É como beber todo dia um copo invisível de contaminante que, ao longo de algum tempo, vai aumentar o risco de câncer e outras doenças. Podemos afirmar que o risco vai começar no primeiro dia de exposição e vai crescer com a dose e com o tempo em populações que são expostas continuamente. É esperado que apareçam mais casos ao longo dos anos (nas comunidades expostas aos contaminantes) em comparação a comunidades não expostas”


Álvaro Madeira Neto

Médico sanitarista e gestor em saúde

 

Diante dos resultados documentados, o especialista frisa a necessidade de ação por parte das autoridades, para que medidas como o monitoramento contínuo da água e do pescado, a orientação aos moradores, a fiscalização do uso de agrotóxicos, a proteção das margens dos rios, o manejo dos resíduos e a transparência na comunicação dos dados para a população sejam articuladas o quanto antes. 

Entenda a metodologia do estudo

Na análise, foi utilizado o tecido muscular de 47 exemplares de peixes de diferentes espécies. O fragmento escolhido é a principal via de exposição a possíveis contaminantes, já que é a parte mais consumida pelos seres humanos. 

Equipe analisando amostras coletadas durante o estudo

Legenda:
Trabalho em campo de coleta de amostras para o estudo

Foto:
Ana Clara Rosendo

Além disso, segundo o estudo, o músculo reflete de maneira consistente a bioacumulação de compostos tóxicos sem ser diretamente influenciado por alterações metabólicas transitórias, como ocorre em outros órgãos. 

Com a ajuda de um questionário voltado aos moradores das duas localidades, foram levantados dados como a regularidade do consumo dos peixes por parte dos entrevistados, a quantidade média ingerida por refeição e a diversidade de espécies consumidas. 

A avaliação do risco cancerígeno foi feita baseada nos critérios da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (USEPA). O método utiliza equações que levam em consideração a concentração do contaminante no alimento, a taxa de ingestão de peixe definida através do questionário, a frequência de consumo em um ano, a duração da exposição e outras variáveis. 

Espécies coletadas:

  • Oreochromis niloticus (tilápia);
  • Hypostomus plecostomus (bodó);
  • Leporinus friderici (piau);
  • Cichla monoculus (tucunaré);
  • Prochilodus lacustris (curimatã);
  • Psectrogaster rhombioides (branquinha);
  • Serrasalmus rhombeus (piranha);
  • Hoplias malabaricus (traíra);
  • Trachelyopterus striatulus (cangati);
  • Hemiodus langeani (voador);
  • Geophagus brasiliensis (cará-preto).

Conheça o Rio Poti

De acordo com o trabalho, o Rio Poti nasce no Ceará, formado pela confluência dos riachos Santa Maria e Algodões, na localidade de Algodões, próxima à cidade de Quiterianópolis. O curso d’água segue em direção ao norte por, aproximadamente, 105 km e, ao chegar em Crateús, se bifurca, formando uma ilha. 

Na saída da cidade, o rio volta a ser um só e continua o percurso pelo Distrito de Ibiapaba, margeando a serra, até alcançar o povoado de Oiticica. É nesse ponto que o curso atravessa uma fenda conhecida popularmente como Boqueirão ou Cânions, ingressando no território piauiense. No Piauí, o Rio Poti integra a bacia do Longá, passando por Teresina e se unindo ao Delta do Parnaíba

A reportagem questionou a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema) sobre a existência de medidas governamentais de combate à poluição no Rio Poti, mas não obteve respostas até o momento da publicação desta matéria.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também foi procurado para responder às indagações. Via e-mail, a instituição informou que a demanda havia sido foi protocolada junto à Superintendência do Ibama no Estado do Ceará (Supes),  mas não concedeu mais esclarecimentos até o momento.

No caso de surgirem novas informações, a matéria será atualizada. 

 

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *