A venda crescente de medicamentos em canetas injectáveis, incluindo os fármacos concebidos para diabéticos, mas também usados para perda de peso, está a preocupar entidades responsáveis pela gestão de resíduos terapêuticos de origem doméstica. Isto porque não existe hoje em Portugal uma moldura legal que enquadre o tratamento de dispositivos com agulha (incorporada ou não) usados fora do contexto hospitalar. Os contentores da Valormed nas farmácias não são o destino correcto para materiais perfurantes, mas, ao mesmo tempo, o descarte no lixo comum traz riscos ambientais e de saúde pública. Como resolver este impasse?

“Foi exactamente ciente deste problema e da necessidade de se encontrar uma solução que, em Janeiro de 2022, os sócios da Valormed submeteram à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) um caderno de encargos para a criação de um sistema específico destinado à recolha desta fileira de resíduos”, afirma Luís Figueiredo, director-geral da Valormed, numa nota enviada ao Azul.

Um novo caderno de encargos, já actualizado em função da nova legislação, foi enviado à APA “há cerca de uma semana”, acrescenta o responsável da Valormed, que aguarda pela “discussão técnica” do documento. O Azul contactou a APA, que confirma a recepção do documento, que está agora a ser analisado.

Tendo em conta a proposta recebida em sede de caderno de encargos, e considerando as sinergias identificadas, entende-se que [o novo sistema] pode ser semelhante ao fluxo de embalagens de medicamentos, aproveitando a rede de recolha já criada para o efeito. O objectivo principal é também neste fluxo desviar esta tipologia de resíduos, classificada de uma maneira geral como resíduo perigoso, do fluxo de recolha dos resíduos urbanos, evitando contaminações do mesmo, refere a APA numa resposta por escrito enviada ao Azul.

O Decreto-Lei n.º 24/2024, de 26 de Março, vislumbra a criação de um novo regime de responsabilidade alargada do produtor, que deve ser operacionalizado até 31 de Dezembro de 2025, para dar finalmente uma resposta segura e ecológica aos resíduos de autocuidados de saúde.

O futuro regime deverá incluir agulhas, lancetas, seringas, compressas com sangue, equipamentos de autodiagnóstico, monitorização ou de administração de medicamento ou até resíduos menos frequentes como os da diálise domiciliária, prevendo-se um tratamento equivalente ao exigido para os resíduos hospitalares com as mesmas características. Neste momento, contudo, persiste a falta de resposta.

Agulhas não devem ir para a Valormed

A Valormed recorda que actualmente a sua actuação se circunscreve à gestão de resíduos de embalagens vazias e medicamentos fora de uso – o que não inclui agulhas e outros materiais cortantes e perfurantes, que neste momento estão unicamente abrangidos pelo despacho 242/96, referente à gestão de resíduos hospitalares de incineração obrigatória. Ainda assim, refere a entidade, muitas pessoas enviam canetas injectáveis com agulhas para os contentores da Valormed por desconhecimento ou falta de opção.

“Os dispositivos utilizados na administração injectável de certos medicamentos – como insulina, heparina, semaglutido, tirzepatida, entre outras substâncias activas –, e que contêm uma agulha que não pode ser separada ou retirada, não devem nem podem ser depositadas nos contentores da Valormed”, alerta Luís Figueiredo, referindo-se a fármacos anticoagulantes e antidiabéticos.

O Ozempic (cuja substância activa é o semaglutido), que se tornou famoso por também ajudar na perda de peso, permite a separação das agulhas. Neste caso, por exemplo, o dispositivo vazio pode seguir para o contentor da Valormed. Mas o que fazer com as agulhas, uma vez que são poucas as farmácias que as aceitam de volta? O problema persiste. O Ozempic pertence à classe dos agonistas dos receptores GLP-1, na qual se incluem também os fármacos Trulicity (dulaglutido), Bydureon (exenatido), Mounjaro (tirzepatida), Saxenda e Victoza (liraglutido)

Já o destino dos dispositivos injectáveis cuja agulha não pode ser separada, a exemplo do que acontece com as canetas de adrenalina, constituem um problema ainda maior. Não podem seguir para a Valormed e, por outro lado, o lixo comum não é o destino ideal. José Manuel Boavida, presidente da Associação Protectora de Diabéticos de Portugal, afirmava ao Azul há quatro meses que “essas canetas que não largam a agulha são um desperdício do ponto de vista ecológico”.

Nenhuma das opções farmacológicas é comparticipada para o combate à obesidade, mas, apesar do preço, a venda deste tipo de medicamentos disparou nos últimos quatro anos. Só em 2024, o consumo desta classe de medicamentos aumentou 45% face ao ano anterior, de acordo com dados da Associação Nacional de Farmácias avançados pelo Jornal de Notícias (estes números excluem o Ozempic, indicado apenas para diabéticos). Um novo medicamento, o Wegovy, chega às farmácias portuguesas no dia 7 de Abril.

Esta subida no consumo de canetas injectáveis implica uma produção proporcional de resíduos específicos, que incluem agulhas e plásticos contaminados com material biológico (sangue), para a qual Portugal ainda não tem uma resposta adequada.

“Seringas só no agulhão”

A Associação Farmácias de Portugal (AFP) também está preocupada com o crescimento das vendas de medicamentos injectáveis numa altura em que ainda não foi colmatada a lacuna existente na legislação.

“O aumento exponencial da venda destes medicamentos injectáveis representa uma preocupação para a AFP no que diz respeito à gestão dos resíduos daí resultantes. Aliás, esta tem sido uma preocupação da AFP desde há muito tempo”, refere a associação numa resposta por escrito.

A AFP frisa que a criação da iniciativa “Seringas só no agulhão”, em 2019, se deveu precisamente à falta de resposta para agulhas usadas em contexto doméstico. O projecto consiste em oferecer gratuitamente às farmácias associadas contentores com capacidade de 30 litros – os chamados “agulhões” –, dentro dos quais é possível depositar materiais cortantes e perfurantes entregues pelos clientes.

“Agulhões” só em 204 farmácias

A resposta proporcionada pelos “agulhões” é, contudo, muito limitada: a AFP contava em 2024 com um contentor em cada uma das 204 farmácias aderentes, sendo que existem em Portugal mais de três mil farmácias (3118, segundo dados da Pordata de 2023). Para cobrir todo o território nacional, seria necessário multiplicar por 16 os contentores que são recolhidos trimestralmente pela Ambimed, uma empresa especialista neste tipo de resíduos.

As farmácias que não são associadas da AFP podem ter acesso a um “agulhão” mediante a celebração de um protocolo. Este acordo prevê o pagamento directamente à Ambimed dos custos de recolha e tratamento dos materiais cortantes e perfurantes com resíduos biológicos, afirma a associação. Ou seja, trata-se de um investimento privado para proporcionar o serviço aos clientes.

A universalização do projecto exigiria, afirma a AFP, um apoio do Ministério da Saúde. A associação garante já ter reunido “por diversas ocasiões com responsáveis pela pasta da Saúde” para tentar que a iniciativa “Seringas só no agulhão” fosse integrada no Orçamento do Estado. Assim, “todas as farmácias comunitárias nacionais passariam a dispor de um ‘agulhão’”, defende.

“Os custos previstos para esta implementação rondam os 400 mil euros, mas em compensação o país conseguiria poupar em despesas ambientais, humanas e de saúde um montante muito superior à quantidade de corto-perfurantes que são vendidos anualmente”, afirma a AFP no mesmo documento.

Dois milhões de agulhas recolhidas

A AFP tem vindo a registar “um aumento substancial do número de corto-perfurantes recolhidos”, mas estes valores estão associados à crescente adesão de farmácias ao projecto. Não é possível, portanto, estabelecer uma relação entre o aumento da recolha e o aumento das vendas de canetas injectáveis com liraglutido, semaglutido e tirzepatida, as substâncias activas dos medicamentos agonistas dos receptores de GLP-1.

Em 2019, quando o projecto-piloto “Seringas só no agulhão” teve início, havia 10 farmácias aderentes. Em seis anos, este número aumentou 20 vezes. No primeiro ano, foram recolhidos cerca de 30.600 agulhas e outros materiais corto-perfurantes. Nos anos subsequentes, a AFP registou os seguintes valores: 107.100 em 2020; 173.400 em 2021; 831.300 em 2022; 1.127.100 em 2023 e, por fim, 2.233.600 em 2024.

O objectivo da iniciativa “Seringas só no agulhão” é “evitar o descarte inadequado no lixo comum, prevenindo riscos ambientais e de saúde pública”, refere a AFP. Em seis anos, o projecto evitou que mais de 4,5 milhões de corto-perfurantes fossem depositados no lixo comum por pacientes com diabetes tipo 2 ou outros problemas de saúde.

Num estudo publicado em 2022, cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto concluíram que 68% das agulhas (ou dos dispositivos com agulhas) e quase 72% das lancetas para diabéticos eram depositadas no lixo comum. Menos 20% dos diabéticos inquiridos afirmou ter recebido informação sobre o depósito adequado por parte de um profissional de saúde.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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