O que dizem as provas recolhidas sobre as causas do acidente – Observador <p class="creditos">DIOGO VENTURA/OBSERVADOR</p>

O cabo não partiu; cedeu no ponto de fixação. A fiscalização que foi feita no dia do acidente não tinha como detetar a possível anomalia que esteve na origem do acidente. Os planos de manutenção foram cumpridos. Os travões de emergência foram devidamente acionados.  O guarda-freios fez tudo ao seu alcance para impedir o acidente. Mas o sistema de redundância que existia nunca seria capaz de travar o elevador — era fisicamente impossível.

São estas as principais conclusões da nota informativa publicada este sábado pelo GPIAAF e que ajudam a trazer alguma luz sobre as causas do acidente que vitimou pelo menos 16 pessoas em Lisboa e que terá acontecido em menos de um minuto. Mas continuam a existir muitas dúvidas por esclarecer. E somam-se interrogações sobre a segurança deste tipo de veículos.

O cabo que unia as duas cabinas do Elevador da Glória cedeu no seu ponto de fixação. Esta informação vai ao encontro daquilo que o Observador já tinha avançado com base em fontes conhecedoras do processo: ao contrário que foi sendo dito inicialmente, o cabo que garante a circulação do Elevador da Glória não partiu exatamente; o problema pode estar numa peça específica (designada como “trambolho”) que não é habitualmente inspecionável, o que pode ajudar a explicar o facto de o Elevador ter sido dado como operacional no próprio dia do acidente.

Especialistas ouvidos pelo Observador nos últimos dias já tinham questionado a hipótese avançada inicialmente de o problema estar no cabo. É o caso de Telmo Santos, presidente do departamento de engenharia mecânica e industrial da NOVA FCT. Isto porque o cabo “é um elemento estruturalmente sobredimensionado, que tem coeficientes de segurança elevadíssimos”, reitera, em declarações ao Observador.

No entanto, o relatório não aponta nenhuma hipótese para o que terá causado o problema com o sistema de fixação, destacou Fernando Branco, professor de engenharia no Instituto Superior Técnico, ao Observador. “Eu não sei se o cabo era injetado com algum produto, se era apertado dentro do tubo por algum sistema e funcionava só por atrito”, sugere, notando que o relatório menciona a vida útil dos cabos em si, mas não diz nada sobre a vida útil deste sistema que falhou.

O especialista em engenharia civil considera que, no seu campo de especialidade, um sistema como este seria absolutamente “arcaico“. Fernando Branco aponta ainda outra questão que pode ajudar a explicar uma falha no sistema: o facto de o elétrico ter passado a utilizar cabos novos há seis anos. “Quando se muda para cabos novos, tem de se ver qual é nova vida útil do sistema de fixação”, aponta.

É um ponto relevante desta nota informativa: “A manutenção e conservação do sistema do ascensor da Glória está contratualizada pela entidade operadora a uma empresa externa de prestação de serviços especializada, cujos termos do contrato existente definem que compete à primeira o fornecimento dos cabos e à segunda a sua instalação sob a fiscalização da primeira”.

Ou seja, quer isto dizer que é a Carris a entidade responsável por fornecer os cabos, que é a MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia quem tem como função a instalação do sistema e que a Carris fiscaliza este mesmo processo. Tendo existido um problema na instalação do sistema, a Carris tinha o dever de o detetar; se a origem do problema é o desgaste ou mau funcionamento das peças, seria a MNTC a responsável por corrigir a situação.

De acordo com o GPIAAF, sim. “Segundo as evidências observadas até ao momento, o plano de manutenção previsto estava em dia e na manhã do dia do acidente havia sido realizada a inspeção visual programada, a qual não detetou qualquer anomalia no cabo e nos sistemas de frenagem dos veículos.”

Mais se acrescenta: “A zona onde o cabo se separou não é passível de visualização sem desmontagem.”

Fernando Branco, professor de engenharia no Instituto Superior Técnico, considera que este programa de inspeção do sistema de fixação, sendo menos regular, é “um problema” e um obstáculo nas avaliações dos riscos envolvidos.

Recorde-se que o Elevador da Glória foi alvo de inspeção na manhã do acidente. A inspeção começou 13 minutos depois das 9 da manhã e terminou 30 minutos depois. Nessa vistoria, os responsáveis pela manutenção concluíram que o “ascensor tinha todas as condições para operar” e que a mudança do cabo só deveria ocorrer dali a 263 dias.

Carlos Neves, presidente do Colégio de Engenharia Mecânica da Ordem dos Engenheiros, reconhece que o facto de a manutenção diária implicar apenas uma análise visual, que não contempla alguns elementos, pode querer dizer que, mesmo seguindo à risca o protocolo, não seja possível identificar todos os problemas com o aparelho — tal como terá acontecido na Glória.

No entanto, ressalva o mesmo Carlos Neves, os “protocolos de manutenção são definidos por quem conhece melhor o equipamento”. O especialista recusa, para já, apontar este protocolo de manutenção como uma causa do acidente.

“Uma vez que o fabricante já cá não está, é indiscutivelmente a Carris quem conhece melhor o equipamento”, afirma. A externalização do contrato de manutenção em nada afeta esta leitura de Carlos Neves, uma vez que esse conhecimento “deve constar do procedimento de contratação pública, do caderno de encargos e todo esse tipo de negócio”.

Não. As rotinas de manutenção destes ascensores têm periodicidades diferentes. Existem inspeções diárias, semanais, mensais e trimestrais. Ou seja: este relatório da GPIAAF parece indicar que a inspeção diária não teria como detetar potenciais anomalias na zona onde o cabo se separou, uma vez que esse conjunto de peças teria de ser desmontado.

No próprio dia do acidente, a Carris garantiu em comunicado que os planos de manutenção (mensal, semanal e diário) “tinham sido escrupulosamente cumpridos”. E mais acrescentava que o último registo de manutenções ao Elevador da Glória era de maio de 2025. A reparação intercalar, concretizada de dois em dois anos, foi feita pela última vez em 2024.

Entre novembro e dezembro de 2022, o serviço esteve suspenso durante seis semanas para trabalhos de reparação. Nesse período foram inspecionados e substituídos componentes mecânicos e elétricos como cabos, travões e sistemas de segurança. A próxima grande manutenção seria em 2026. Ou seja, é preciso apurar se, em algum destes momentos de inspeção e manutenção mais exaustivos houve falhas; ou, se pelo contrário, era mesmo (praticamente) impossível detetar este problema.

Tanto quanto se sabe, não. É isso mesmo que reconhece o GPIAAF. “Na presente data a investigação constatou que o ascensor não está na alçada da supervisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., não detendo neste momento a investigação informação fidedigna e confirmada sobre qual é o enquadramento legal do ascensor da Glória, nem sobre qual é a entidade pública que tem a obrigação de supervisionar o funcionamento e segurança deste sistema de transporte público.”

Tal como explicava o jornal Público na edição desta segunda-feira, até 2020, o IMT estava obrigado a supervisionar os sistemas de transporte por cabo em ascensores que não tivessem tração própria — como o de Santa Justa e da Bica. Os elevadores da Glória e do Lavra, no entanto, têm motores incorporados, embora também dependam do cabo que os mantém ligados.

A partir de 2020, a nova lei veio isentar o IMT de inspecionar o funcionamento de todos os elevadores históricos. Acrescenta o mesmo jornal que, naquilo que terá sido um gesto de boa vontade e de boa cooperação com a Carris, o IMT continuou a desenvolver a sua atividade de supervisão aos elevadores de Santa Justa e da Bica. O elevador da Glória terá ficado de fora.

Sim. De acordo com a nota informativa do GPIAAF, as evidências até agora recolhidas “confirmam que o sistema de emergência existente no volante de inversão localizado no cimo da Calçada da Glória para em caso de perda de força no cabo proceder ao corte de energia às cabinas, funcionou como previsto, o que teria como efeito a aplicação imediata e automática do freio pneumático em cada uma delas”.

O mesmo documento salvaguarda, ainda assim, que “ainda não foi possível proceder às verificações de confirmação de que o sistema de aplicação automática do freio pneumático nos veículos como resultado da perda da força do cabo no trambolho tenha ou não funcionado“.

Sim. Este relatório diz que o guarda-freios acionou o freio pneumático do veículo “de imediato”, bem “como o freio manual a fim de tentar suster o movimento”.

Trata-se de um sistema redundante na medida em que ativa dois sistemas de travagem: “Um que trava as rodas diretamente”, “outro que entra na calha onde corre o cabo e aperta contra a calha”, explica Fernando Branco.

Não. “As evidências indicam que o freio pneumático e também o freio manual foram rapidamente aplicados pelo guarda-freio da cabina n.º 1, mas que na configuração existente os freios não têm a capacidade suficiente para imobilizar as cabinas em movimento sem estas terem as suas massas em vazio mutuamente equilibradas através do cabo de ligação”, pode ler-se no documento.

“O sistema do ascensor, tal como está concebido, está previsto para, em caso de cedência da ligação pelo cabo entre as cabinas: aplicar automaticamente em cada veículo o freio pneumático na força máxima, através de mecanismo interno acionado pela perda da força do cabo no trambolho; e cortar a energia no sistema elétrico dos veículos, através de um dispositivo localizado no compartimento técnico no topo da Calçada da Glória e incorporado no suporte do volante de inversão do cabo; a ausência de energia elétrica no sistema tem igualmente o efeito de aplicar automaticamente em cada veículo o freio pneumático na força máxima.”

Por este motivo, Telmo Santos considera que “este sistema de travagem não era um verdadeiro sistema redundante”, uma vez que o sistema só serve para travar a cabina caso o cabo esteja intacto. “Como a ligação entre as duas através do cabo se perdeu, este sistema de travagem não é suficiente para travar a cabina por si, sem a força do cabo que lhe faz de contrapeso”, declara. Ou seja, num caso em que o cabo se rompesse, o sistema de travagem seria sempre insuficiente para travar as cabines.

Segundo o mesmo documento,  tudo aconteceu em menos de um minuto. “Cerca de 170 metros após o início do percurso, no início da curva à direita que o alinhamento da calçada apresenta na sua parte final, o veículo, devido à velocidade, descarrilou e começou a tombar para a esquerda no sentido da marcha (…) Estima-se, com uma margem de incerteza não negligenciável devido ao desconhecimento de alguns parâmetros, que o primeiro embate tenha ocorrido a uma velocidade da ordem dos 60 km/h, tendo todos estes eventos decorrido num tempo inferior a 50 segundos.”

Não. O GPIAAF aproveita esta nota informativa para esclarecer que “deste documento não podem ser retiradas quaisquer conclusões válidas quanto às causas do acidente, considerando que a informação factual aqui apresentada é incompleta, uma vez que apenas no decurso da investigação poderá a mesma ser completada e sujeita a análise, a qual ficará patente no relatório final”.

Mais à frente pode ainda ler-se que “as investigações realizadas pelo GPIAAF têm como único objetivo contribuir para a melhoria da segurança através da prevenção de futuros acidentes ou da mitigação das suas consequências, não se destinando nem sendo conduzidas com vista ao apuramento de culpas ou à determinação de responsabilidades”. “Dos factos expressos nesta Nota não se deve presumir culpa ou responsabilidade de qualquer organização ou pessoa envolvida na ocorrência”, acrescenta-se.

Não. O gabinete liderado por Nelson Oliveira compromete-se novamente a publicar um relatório preliminar “previsivelmente no prazo de 45 dias, dando conta dos trabalhos de investigação realizados e das conclusões que estejam disponíveis nessa data, tendo em conta as eventuais restrições que decorram das obrigações decorrentes do segredo de justiça do processo judicial paralelo em curso”.

“Após conclusão da investigação e do procedimento de audição das partes relevantes, o GPIAAF publicará o relatório final contendo os factos apurados, a sua análise, as conclusões sobre as causas do acidente e, se aplicável, recomendações de segurança. Se não for possível publicar o relatório final no prazo de um ano, nos termos da legislação nacional e europeia, o GPIAAF publicará nesse momento um relatório intercalar, descre- vendo o andamento da investigação e os problemas de segurança eventualmente detetados até então.”

Carlos Neves, da Ordem dos Engenheiros, aponta, por exemplo, que não são conhecidos os protocolos de manutenção para além do protocolo diário, que serão necessários para averiguar se o sistema de fixação tinha algum problema identificado. “Estes protocolos de manutenção vão ser todos objeto de auditoria, portanto, de investigação. E não é só investigação do género existe ou não existe. Existe? É aplicado? E se é o adequado para o tipo de equipamento e para o tipo de utilização que está a ter”, elenca.

E esclarece a questão da utilização: “Mais utilização significa que estamos a usar o equipamento com outro nível de esforço, portanto estamos a acelerar os processos de fadiga dos materiais, e isso significa, provavelmente, encurtar os períodos de verificação ou até fazer outro tipo de técnicas de inspeção e manutenção”.

Esta nota informativa aponta para três dados que podem atenuar, de alguma forma, a pressão política que vai existindo sobre Carlos Moedas: a manutenção do Elevador estava em dia; a inspeção diária foi feita em conformidade; e não houve falhas no sistema de emergência.

A questão central aqui é mesmo a forma como o cabo cedeu. Nas inspeções diárias, de rotina, o cabo é sempre verificado. Se se tivesse partido ou rompido simplesmente, como se especulou inicialmente, isso significaria (quase automaticamente) que a inspeção tinha sido mal feita. E o mesmo vale para o sistema de emergência.

Se uma ou outra coisa tivessem falhado, começaria o apuramento imediato de responsabilidades: a empresa de manutenção (contratada pela atual administração da Carris), a empresa (Pedro Bogas foi nomeado pela coligação PSD/CDS) e, por arrasto, o executivo liderado por Carlos Moedas, teriam de prestar contas.

Ora, o facto de o cabo ter cedido no seu ponto de fixação (e não simplesmente partido) torna mais difícil retirar conclusões imediatas. Qualquer problema nessa zona só seria detetado se o sistema fosse desmontado — algo que não se faz com uma inspeção diária. De acordo com o GPIAAF, os planos de manutenção (mensais, semanais e diários) estavam a ser cumpridos. E também o sistema de emergência previsto funcionou — embora, tal como está desenhado, fosse sempre insuficiente.

Tudo somado, não existe, para já, nada que se possa apontar diretamente à MNTC, à Carris ou à administração de Carlos Moedas. E ainda que decorram outras investigações em paralelo, o relatório preliminar só será conhecido daqui a 45 dias, já depois das eleições autárquicas. Até lá, continuam a valer estes primeiros factos.

Relatório aponta possível causa do acidente: cabo do elevador cedeu no ponto de fixação

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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