Maria aprendeu a contar o tempo pelos ciclos do rio na sua casa flutuante, em um dos furos – canais que ligam diferentes cursos d´água – do Rio Negro. Sabia quando vinha a cheia, quando dava para plantar macaxeira, quando os peixes subiam. O calendário estava na água, não no papel. Mas, nos últimos dois anos, o tempo desaprendeu de ser tempo. Em vez da cheia de abril, veio a poeira. A canoa, que antes era transporte, encalhou num leito rachado. A água do poço ficou turva. A escola fechou por falta de acesso. “É a seca”, diziam no rádio. No entanto, a palavra parecia pequena demais para o que ela via. As roças secaram, os peixes sumiram e a comunidade ribeirinha de Maria virou manchete da catástrofe anunciada. Em 2023, a Amazônia enfrentou a maior queda já registrada nos níveis dos rios. Depois que os repórteres foram embora, restou o calor, a lama e o mesmo vazio: ninguém sabia bem o que fazer. Ninguém conseguia explicar por que o tempo já não obedecia aos ritmos que Maria e tantos outros aprenderam a escutar ao longo da vida.

No outro extremo geográfico e socioeconômico do país, em maio de 2024, as águas da tragédia gaúcha atingiram Muçum, uma cidade do Vale do Taquari com cerca de 4 mil habitantes, impactada até hoje por cinco enchentes avassaladoras desde 2023. Moradores relataram não ter mais lágrimas para chorar em meio à destruição. A cena brutal lembra, em outras águas e distâncias, as comunidades amazônicas. Ainda que distante do asfalto, a situação de Maria se entrelaça com a dos moradores de Muçum e das periferias das cidades brasileiras, pequenas ou grandes, nortistas ou sulistas. O desafio de buscar soluções e superar a inação atravessa as comunidades ribeirinhas e as favelas urbanas.

A crise climática não respeita código postal. A falta de preparo, planos e respostas, também não. O que acontece com Maria e com o município de Muçum se repete, com variações de nome e intensidade, em centenas de cidades brasileiras. De acordo com um estudo de 2024 da Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica, baseado em dados públicos do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), foram registrados mais de 64 mil eventos extremos induzidos pelo clima desde 1991 nos municípios brasileiros, representando um aumento médio de cem registros por ano (1991 a 2023). Nesse período, quase 220 milhões de pessoas foram diretamente afetadas, entre mortos, doentes, desabrigados e desalojados (uma mesma pessoa pode ter sido contabilizada mais de uma vez). Como resultado das alterações estruturais no arranjo climático e socioeconômico global, o clima deixou de sofrer mudanças e passou a sofrer mutações, como defende o sociólogo francês Bruno Latour.

Primeiro, o céu escurece, a chuva cai sem piedade, o calor se estende por semanas sem arrefecer. Depois, vem o acúmulo: nas ruas alagadas, nas encostas que deslizam, nas lavouras queimadas, nos boletins de emergência. E então: o que fazer agora? O município busca os números, o governo estadual consulta mapas defasados, o alerta federal não chega em tempo. As ações se sobrepõem ou se omitem, enquanto o desastre avança e os danos, muitas vezes irreversíveis, se acumulam. É nesse hiato entre a urgência e a decisão que se revela um padrão trágico: as mudanças climáticas estão intensificando a frequência e severidade dos desastres urbanos, e seguimos tratando esses eventos com ações descoordenadas, frágeis, sem ancoragem em evidências e dados confiáveis e atualizados.

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, a ação humana, sobretudo o uso intensivo de combustíveis fósseis, o desmatamento e a ocupação desordenada do solo, causou um aquecimento inequívoco da atmosfera, dos oceanos e da superfície terrestre. O calor acumulado ao longo do último século já modificou os ciclos da chuva, os padrões das secas, os movimentos das massas de ar e das correntes oceânicas, a vida das pessoas. As consequências não são somente atmosféricas. Elas são urbanas. 

O calor acumulado se manifesta diretamente nas ruas alagadas, na temperatura que assola casas sem ventilação e na destruição de reservatórios que abastecem territórios e cidades inteiras. Muitos desses desastres urbanos se tornam complexas crises humanitárias, em especial quando atingem populações já profundamente vulneráveis, desassistidas e mal representadas por políticas públicas, que ora são inexistentes, ora ineficazes e restritas.

Os parâmetros da ONU definem desastres como eventos que desorganizam profundamente o funcionamento da sociedade, gerando perdas humanas, materiais, econômicas e ambientais. Não são fenômenos “naturais”: resultam do encontro entre um perigo (como tempestades, secas, ondas de frio e calor, erosões, enxurradas, movimentos de massa ou deslizamentos) e um território exposto, mal preparado. É essa combinação que o IPCC define como risco: perigo + exposição + vulnerabilidade. O diagrama que representa essa interação é popularmente conhecido como “flor de risco”, visualmente delicada, mas impactante.

Desde a Conferência de Yokohama, em 1994, passando pelos marcos de Hyogo em 2005 e Sendai em 2015, a comunidade internacional vem tentando se organizar para evitar ou ao menos mitigar os efeitos de desastres relacionados ao clima. Mapas foram redesenhados, protocolos foram criados e manuais foram impressos e distribuídos. Contudo, mesmo diante das boas intenções de um contexto internacional sensível ao tema, há algo nesse sistema que resiste à organização e insiste em falhar. Existe um nó cego que, quando puxado, desenterra uma fragilidade profunda e incômoda: não sabemos o suficiente sobre os municípios, bairros e ruas em que vivemos. No Brasil, o governo federal não dialoga com o governo estadual, que não alcança o governo municipal, onde a vida diária acontece.

O que os especialistas chamam de “gestão de riscos e de desastres” é, na prática, um esforço contínuo e coletivo envolvendo uma série de atores, públicos e privados, para prever as manifestações mais drásticas da crise climática, reduzir seus efeitos nefastos, responder a emergências e reconstruir o que foi destruído – e isso tudo deve ser feito antes, durante e depois de um evento extremo atingir uma cidade. Cada uma dessas etapas exige escolhas e renúncias difíceis. E nenhuma boa escolha se sustenta no escuro, sem o apoio de dados atualizados, confiáveis, localizados e completos.

É aí que a cadeia quebra.

O Brasil até dispõe de duas medidas de vulnerabilidade e exposição, computadas pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), órgão do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Um deles, o Indicador de Capacidade Municipal (ICM), mede o quão preparado o município está para gerir riscos e desastres. É composto por vinte instrumentos de gestão de riscos e de desastres. Com base no ICM, Muçum foi considerado um município prioritário, por dispor de apenas 7 dos 20 instrumentos previstos. Trata-se, no entanto, de um indicador binário, que atesta a presença ou a ausência dessas políticas públicas, sem aferir sua qualidade, efetividade ou grau de implementação. Dois municípios podem obter a mesma pontuação, embora tenham situações drasticamente diferentes.

A outra medida existente no Brasil é o Índice de Risco Qualitativo (IRQ), que busca mensurar, com base em variáveis ambientais, econômicas e sociais, o quão sujeitos a riscos estão os habitantes de um determinado município. Uma das premissas adotadas é a de que o risco qualitativo está diretamente relacionado à ocorrência de eventos passados. Muçum tem um IRQ Alto, que pode ser atestado no site do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil. Esse índice é um instrumento importante para mapear o risco de forma mais ampla, mas sua metodologia depende fortemente de registros históricos de desastres. São informações de que muitos municípios não dispõem ou não reportam de forma detalhada.

Quando esses dados precisam sair das planilhas e informar uma ação local e eficaz, eles se revelam genéricos, atrasados e incompletos. O município sabe que há riscos, mas não sabe exatamente onde e qual a sua magnitude. Sabe que há moradores em áreas frágeis, porém não quantos, e nem quão precarizados realmente estão. Sabe que vai chover, no entanto não sabe se a drenagem suportará o volume que vem do céu. E, quando o desastre ocorre, o dado não chega em tempo real, se é que realmente chega. Esse lapso de dados e informação é a diferença entre a evacuação e o luto. Entre o alerta que chega a tempo e o que falha. Entre saber que vai alagar e torcer para não chover muito.

É irônico, é trágico. Vivemos na era dos dados massivos (big data), da inteligência artificial, da modelagem preditiva. Temos satélites com tecnologia capaz de monitorar em tempo real a umidade do solo e o deslocamento de massas de ar com uma precisão nunca atingida. Temos sensores que medem o nível do rio. Temos algoritmos que cruzam imagens de radar, topografia e cadastros urbanos. E, ainda assim, não sabemos com precisão onde estão as casas mais vulneráveis de muitos municípios. Em alguns casos, há mapeamentos parciais de áreas de risco, mas eles raramente se traduzem em ações concretas de prevenção. Sabemos muito sobre o planeta e seu complexo sistema biogeofísico; quase nada, entretanto, sobre o quarteirão que vai padecer na próxima tempestade.

A falha não é só tecnológica. É institucional. Os frágeis dados que existem não conversam entre si. Os sistemas não se integram. As planilhas se perdem em mensagens, e-mails, pastas, versões, começos e recomeços. E, quando tudo isso é necessário para orientar a ação, eles não estão lá. Há uma escuridão informacional no momento exato em que o ruído da urgência grita mais alto. É um apagão de dados, um silêncio de dados e um vácuo de inteligência onde a ação deveria ser preparada e iniciada. Precisamos desesperadamente de dados que sejam bons, acessíveis, atualizados e acionáveis.

Enquanto isso, os eventos extremos se multiplicam. Cresce a demanda por respostas rápidas e efetivas. Cresce a pressão sobre prefeitos, governadores, técnicos, defesa civil e moradores. A responsabilização chega antes da orientação. Como responder com agilidade se não há bússola? Como prevenir, se os alicerces do planejamento são frágeis? Esse paradoxo se aprofunda nos territórios marcados por profunda desigualdade social e urbanização desordenada. Justamente onde a ação pública é mais necessária, ela é mais frágil.

O rio de Maria, enfim, subiu, mas trouxe menos peixe e uma dúvida dilacerante: será assim todo ano? Maria segue na mesma casa, em seu flutuante, com a canoa encostada e o rádio ligado. Aprendeu a esperar pelos boletins, mas não sabe ao certo o que fazer com eles. Porque não basta acender a luz dos dados e saber que o rio vai subir. É preciso saber o que fazer quando ele subir, e tomar as providências necessárias com cuidado, escuta atenta e empatia. 

Ainda é possível construir cidades mais preparadas, porém isso exige abandonar as decisões feitas no escuro. É preciso que atores públicos e privados se articulem para produzir melhores dados e aprender a escutá-los e transformá-los em ações decisivas. Torna-se urgente fomentar e disseminar mais iniciativas colaborativas envolvendo organizações sérias que conhecem profundamente as complexidades da realidade brasileira. Um bom modelo é o Índice de Progresso Social (IPS), uma metodologia que avalia a qualidade de vida nos municípios brasileiros de maneira multidimensional, fruto de uma articulação estratégica entre várias instituições: Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Fundação Avina, Centro de Empreendedorismo da Amazônia, Iniciativa Amazônia 2030, Anattá – Pesquisa e Desenvolvimento, e o Social Progress Imperative. Colaborações como essa enfrentam o desafio da geração, manutenção e atualização de dados de qualidade para amparar decisões críticas sobre problemas públicos. Precisamos de um IPS para desastres, que reúna organizações e líderes da área e integre estrategicamente as várias instâncias do poder público. Precisamos iluminar a escuridão dos dados com ferramentas multidimensionais.

A COP30 nos parece o cenário ideal para tratar desse tema incontornável. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, como se sabe, será realizada em plena Amazônia – em Belém. Nunca é demais lembrar que, atualmente, 76% dos amazônidas residem em áreas urbanas. São populações precarizadas – que necessitam sem mais demora de políticas públicas guiadas pela luz dos dados e das evidências.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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