Já se passaram cinco anos desde que a pandemia da Covid-19 assolou o planeta e, embora pareça tempo suficiente para olhar para trás e compreender o que vivemos, na prática, ainda é difícil responder a algumas perguntas importantes.
foto: Victor Moriyama
O que aprendemos com ela? Superamos o que sofremos? Conseguimos elaborar todas as perdas que atravessamos? Saímos melhores ou piores de tudo aquilo? As expectativas que tínhamos quando tudo começou se concretizaram? Poderia ter sido diferente do que foi?
Vivenciar a maior crise do século mexeu com todos nós. Ninguém estava preparado para o que viria, e ninguém saiu ileso. O que restou de tudo isso? Talvez seja hora de revisitar esse período, entender suas marcas e refletir sobre onde estamos agora.
O impacto inicial: um desamparo radical (2020-2021)
No início da pandemia, o mundo foi lançado em um estado de profundo desamparo. O vírus revelou a fragilidade da existência e nossa vulnerabilidade diante da morte. Foi um período marcado por uma angústia difusa, alimentada pelo medo da contaminação, pela perda de entes queridos e pelo colapso da ordem social. O cotidiano foi invadido por medidas restritivas, isolamento e luto — tanto pelas mortes quanto pela perda de um modo de vida conhecido.
Nossa convivência em sociedade sofreu um impacto brutal. O contato físico se tornou um risco, e a relação com o outro foi ressignificada: uma pessoa que eu amo poderia ser, na verdade, um vetor de contaminação. Essa ameaça trouxe à tona diferentes formas de defesa e maneiras de lidar com ela: desde o negacionismo até a compulsão por limpeza, o alívio temporário ou a completa agonia pelo isolamento.
A economia entrou em colapso, todas as formas de trabalho foram afetadas e a vida passou a acontecer majoritariamente online. Enquanto uns puderam se proteger dentro de casa, outros ficaram expostos à contaminação do início ao fim, sem a opção de se proteger ou de proteger seus familiares. As desigualdades de classe se tornaram ainda mais evidentes, e nos deparamos de forma crua com as disparidades sociais do nosso país.
No início, alimentamos a expectativa de uma mobilização global de solidariedade que poderia transformar a humanidade. No entanto, à medida que o ano avançava, nos deparamos com o individualismo e o egoísmo como grandes barreiras à coletividade, da qual dependíamos para minimizar os impactos da catástrofe. Isso sem contar as aberrações do poder público, que acrescentavam camadas de extrema crueldade ao que já era naturalmente difícil e doloroso.
A fadiga pandêmica (2021-2022)
À medida que as vacinas surgiram e a pandemia entrou em uma nova fase, o mundo passou a lidar com uma espécie de luto coletivo. Houve um anseio por “retornar ao normal”, mas que normal era esse? A pandemia deixou marcas psicológicas profundas: muitos experimentaram exaustão mental, desmotivação crônica e uma crise generalizada de sentido da vida.
No campo do trabalho e da vida social, emergiu uma nova relação com o tempo e o espaço: o home office, a hiperconectividade e a dissolução das fronteiras entre vida pessoal e profissional intensificaram sintomas ansiosos e depressivos. O sujeito pós-pandemia oscilava entre a euforia da “volta à vida” e uma profunda desorientação.
Os rastros da pandemia (2022-2023)
Com o passar do tempo, os efeitos psicológicos da pandemia tornaram-se mais claros. Houve um aumento significativo de transtornos de ansiedade, depressão e burnout. Muitas pessoas passaram a relatar uma espécie de apatia emocional, uma grande dificuldade de retomada do desejo.
As crianças e adolescentes, particularmente, manifestaram sintomas marcantes: dificuldades de socialização, fobias e uma relação peculiar com o corpo e a presença no mundo. Acostumando-se ao confinamento, muitos jovens passaram a preferir o entretenimento digital ao encontro real com os outros e o engajamento em atividades corporais.
O laço social não se restabeleceu plenamente. O outro ainda carregava a marca do perigo, da incerteza. A polarização política e os afetos de ódio foram intensificados, pois o luto da pandemia não foi totalmente elaborado – ele foi, de certo modo, reprimido, deslocado para arenas políticas, sociais e ideológicas.
Destaque especial: a polarização política (antes, durante e após todo o período)
No início da pandemia, o medo do desconhecido gerou uma necessidade coletiva de encontrar respostas rápidas. Nesse momento, a polarização política se intensificou porque as decisões sobre lockdowns, uso de máscaras e fechamento de comércios foram interpretadas como posicionamentos ideológicos, e não apenas como medidas sanitárias. O discurso da ciência se misturou a disputas de poder. Falácias como “ou salvamos as pessoas ou salvamos a economia” criavam falsas escolhas e punham mais fogo nas rivalidades.
Com o avanço das vacinas em 2021, a desconfiança ou adesão a elas virou um marcador político. Em vez de ser uma escolha baseada apenas em dados científicos, tornou-se uma questão de identidade grupal. Esse período gerou divisões familiares e rupturas em círculos sociais, com discursos carregados de angústia e agressividade.
Com o fim das restrições e o “pós-pandemia” (2022-2023), em vez de um retorno tranquilo à normalidade, vimos uma sociedade ainda mais fragmentada. Para muitos, a pandemia confirmou crenças prévias, reforçando a tendência à polarização. Além disso, a negação das marcas psicológicas do período fez com que muitos buscassem ignorar o trauma, enquanto outros ficaram presos a um estado de vigilância e ansiedade constante.
Ficou muito claro como a polarização afetou as relações interpessoais. Muitas famílias e grupos de amigos romperam laços devido a diferenças de posicionamento político sobre a pandemia. A identidade e pertencimento foram redefinidos: para muitas pessoas, estar em um grupo ideológico foi um mecanismo de defesa contra a incerteza, funcionando como um organizador psicológico. Além disso, houve uma dificuldade de elaborar o luto, tanto pelo número massivo de mortes quanto pela perda de uma “realidade anterior”. Muitas pessoas lidaram com esse luto de forma defensiva, projetando sua angústia na oposição ao outro.
A pandemia, portanto, não só acelerou processos de polarização que já estavam em curso, mas também reconfigurou a forma como as pessoas lidam com o medo, o poder e a coletividade.
Cinco anos depois (2025)
O mundo segue tentando simbolizar o trauma daqueles anos difíceis. Algumas experiências deixaram marcas duradouras, como a ampliação do uso de tecnologias no cotidiano e um maior reconhecimento da importância da saúde mental. Por outro lado, o desejo de esquecer e “seguir em frente” levou à recusa de um verdadeiro trabalho de elaboração.
Muitos dos sintomas persistem: a ansiedade e a urgência diárias, acompanhadas da sensação de que o tempo passou a acelerar, gerando um medo constante de “perder tempo”. Esse temor se estende à sensação de outra possível catástrofe iminente, criando uma tensão constante em nosso cotidiano. Além disso, observamos a perda significativa de processos cognitivos que hoje parecem exigir muito mais, como aprender, ler, guardar informações e estudar. A fadiga social, que tornou a retomada das interações difíceis para alguns, é sentida como excessivamente cansativa. Também se instaurou uma espécie de desconfiança estrutural, em que o outro continua sendo visto como uma ameaça, seja ela afetiva, sanitária, política ou econômica. Algo parece ter fraturado nossa maneira de perceber e vivenciar as relações. Nada mais é “natural”, e interagir com as pessoas agora, para muitos, parece sempre envolver muitos custos.
Os vínculos entre as pessoas que dividiram o mesmo teto durante a pandemia estão entre os mais abalados. O número de divórcios, por exemplo, aumentou significativamente a partir de 2021. Dentre as famílias em que a polarização política provocou cisões, muitas nunca mais conseguiram retomar a convivência anterior.
Fica claro que estamos, coletivamente, adoecidos. O impacto da pandemia na saúde mental permanece evidente, com um aumento de diagnósticos como depressão, ansiedade e TDAH, além da busca crescente por terapias. Em teoria, a vida voltou ao normal, mas, no fundo, cada um de nós sente que nada nunca mais foi o mesmo.
Quem somos nós após tudo isso?
A pandemia evidenciou a condição estrutural do desamparo humano, mas também revelou a força do nosso desejo de viver. Esse desejo foi percebido em algumas ações de solidariedade, na arte, no humor e nas pequenas tentativas de encontrar sentido em meio ao caos. No entanto, cinco anos depois, permanece a dúvida: conseguimos realmente escutar o que esse período revelou sobre nós mesmos?
Talvez o maior aprendizado ainda esteja por vir — se formos capazes de parar, olhar para trás e realmente elaborar o que vivemos. O que a pandemia revelou não pode ser simplesmente ignorado: ela nos confrontou com a fragilidade da vida e com a necessidade do outro. Curiosamente, essa constatação não nos impediu de avançar em direção ao individualismo e ao acirramento dos conflitos entre nós. Enquanto não conseguirmos simbolizar esse trauma, continuaremos reféns de suas consequências, repetindo, sem perceber, os mesmos mecanismos de defesa que criamos para sobreviver àquele período.
Se considerarmos os fenômenos climáticos e o prognóstico sobre novas pandemias, frequentemente apontados pela ciência, talvez possamos entender que essa elaboração não é opcional. Afinal, outros desafios coletivos nos aguardam no futuro.
Erika Faria ([email protected]) e
Cezar Perini ([email protected])
são psicólogos e psicanalistas,
moradores de Campos do Jordão.