Trecho de ferrovia desmontada na Serra.

O poder público e o empresariado gaúcho estão mobilizados contra um desastre exposto a céu aberto, a agonia da malha ferroviária estadual. O sucateamento de trens e trilhos cresceu vertiginosamente, quase três décadas após o modal ser concedido à iniciativa privada, medida saudada à época como fundamental para a eternização dos trens como modelo de transporte. Em 1997, o Estado brasileiro repassou os 3,8 mil quilômetros de trilhos federais existentes no Rio Grande do Sul a uma empresa particular (a antiga ALL, hoje Rumo). Atualmente, restam 921 em operação. Ou seja, nos últimos 28 anos, encolheu 75%. E sequer há garantias de que estejam funcionais em fevereiro de 2027, quando o contrato atual termina.

O desmonte, com trilhos, fixadores e dormentes sendo retirados e levados para outros Estados, tem ocorrido com frequência, segundo o Sindicato dos Ferroviários. Caminhões carregados de peças são conduzidos a partir da estação do município de Santa Tereza, passando por localidades como Alcântara, Jabuticaba, Coronel Salgado, Feitor Faé, São João e Silva Vargas, em um trecho de aproximadamente 22 quilômetros. Estariam sendo levados para São Francisco do Sul, em Santa Catarina.

Sindicato dos Ferroviários / Divulgação
Flagrante de trilhos desmontados ensacados em Santa Tereza, na Serra.

Pelo informado pela Rumo Logística (leia nota na íntegra abaixo), a ação faz parte de um processo de remanejamento para pontos da Malha Sul que seguem em operação. A empresa sustenta que as ações seguem as normas e estão dentro das autorizações da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável por fiscalizar o contrato. Procurada pela reportagem, a ANTT confirmou que a Rumo tem informado algumas necessidades de transferência de materiais dentro da própria malha, para otimizar trechos que continuam com transporte. Isso foi autorizado, mediante obrigação de reposição por ocasião da definição das linhas que continuarão com transporte.  O secretário nacional de Transporte Ferroviário, Leonardo Cezar Ribeiro, disse à Rádio Gaúcha na quinta-feira (27) que a Rumo tinha autorização para remover trilhos dentro do território gaúcho, não para fora do Estado.

A precarização e falta de reposição fez com que os 3,8 mil quilômetros de trilhos originais virassem apenas 1,6 mil quilômetros em 2023, mas a enchente de maio de 2024 deixou operacionais apenas 921 quilômetros. A Rumo, que movimentou 14 milhões de toneladas de produtos em 2011, transportou apenas 3 milhões de toneladas em 2021 e menos do que isso em 2025.

Ao longo dessas quase três décadas, o Rio Grande do Sul deixou de ter ligação férrea com os países vizinhos (Uruguai e Argentina) e, após o desastre climático do ano passado, sua malha ferroviária está isolada em relação ao Brasil. Locomotivas antiquadas e a precarização dos trilhos fazem com que a velocidade média dos trens, hoje de 21 km/h, seja a quarta mais lenta do país.

Sindifergs / Divulgação
Pedaços de ferrovias estão sendo enviados a outros Estados, principalmente para Santa Catarina.

Sucateamento histórico

Os dados acima são do estudo Panorama da Malha Ferroviária no RS, encomendado pelo vice-governador Gabriel Souza (MDB) este ano. Os números vêm acompanhados de imagens emblemáticas. Após as cheias, mais de 700 vagões parados enferrujam em pátios ferroviários do Rio Grande do Sul, a maior parte em Canoas e Passo Fundo. Pontes e viadutos danificados pelo dilúvio de 2024 não foram consertados, nem os trilhos.

O fato é que as ferrovias gaúchas vivem uma espécie de morte lenta. Enquanto o embarque de grãos no porto de Rio Grande para o Exterior cresceu 35% em uma década, o movimento via férreo diminuiu 13%. Pior é o transporte líquido de combustíveis por trens, que deixou de existir após a enchente de 2024. 

O prejuízo é tamanho que, nos meios públicos e empresariais, já se trabalha com uma estimativa para um provável processo por danos morais e materiais: podem ser cobrados até R$ 20 bilhões de indenização. A quantia englobaria atraso de regiões abandonadas, colapso do sistema rodoviário por excesso de caminhões, acidentes de trânsito que poderiam ser evitados com transporte ferroviário eficiente, desregulação dos fretes e descumprimento na execução do contrato de concessão.

Jean Pimentel / Agencia RBS
Vagões estão abandonados e trilhos parados em Passo Fundo, no norte gaúcho.

Na pauta do Tá na Mesa

O tema será debatido no Tá na Mesa, evento promovido pela Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), na próxima quarta-feira (3).

Presidente do Sindicato dos Ferroviários do Rio Grande do Sul (Sindifergs), João Edacir Calegari será um dos palestrantes do encontro lembra que fez a primeira denúncia sobre precarização em 1998. Eram locomotivas novas transferidas do Estado para o Paraná. E as remoções continuaram, avisa ele, inclusive com envio de trilhos para outros Estados.

Em alguns trechos, árvores cresceram sobre os trilhos e houve casos de furto de material.

JOÃO EDACIR CALEGARI

Presidente do Sindicato dos Ferroviários do Rio Grande do Sul

— As máquinas da Rumo em São Paulo são modernas e têm ar-condicionado. As nossas locomotivas não são climatizadas, as portas nem fecham e os funcionários precisam usar três camadas de roupa no inverno, para suportar o frio. Sem falar que eram mil servidores antes da enchente, hoje 400 trabalham, porque a maioria dos trens está parada — conta.

Jean Pimentel / Agencia RBS
Mais de 700 vagões parados enferrujam em pátios ferroviários do Rio Grande do Sul.

Calegari assegura que existiam 18 locomotivas modernas em Canoas e hoje são apenas seis operacionais. Doze tiveram peças, inclusive motores, retirados e levados para Curitiba.

Críticas do setor político e empresarial

O vice-governador Gabriel Souza diz confiar que o Ministério Público Federal (MPF) vai tomar as medidas necessárias para que a Rumo pare de retirar trilhos e devolva o que já foi levado embora do Rio Grande do Sul. Ele considera que a empresa não tem mostrado interesse na malha ferroviária gaúcha e, por isso, conta que enviou ao Ministério dos Transportes um ofício para que bloqueie o desmonte do trecho ferroviário restante no Estado.

O presidente da Federasul, Rodrigo Sousa Costa, propõe não renovar os atuais contratos de concessão do modal ferroviário no Rio Grande do Sul. Formou um grupo de trabalho, em parceria com Frente Parlamentar das Ferrovias, entidades do setor e o poder público, para estudar e propor novo modelo.

Não se trata mais de uma questão legal, é uma questão moral. A Rumo perdeu a vergonha, não tem a mínima compostura. Temos de nos livrar desse inferno que é a concessão ferroviária no Rio Grande do Sul.

RODRIGO SOUSA COSTA

Presidente da Federasul

Não podemos admitir, por omissão, que nos roubem a esperança, que levem embora nosso futuro. Precisamos ser ouvidos, na construção de uma nova modelagem que integre todo o Sul, de forma competitiva.

O presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), Cláudio Bier, faz coro e promete que a entidade entrará fundo na questão das ferrovias.

— O RS não pode renovar um contrato de concessão que deixou nossa malha ferroviária reduzida, sucateada e desconectada do país. A retirada de trilhos pela Rumo evidencia a falta de compromisso da concessionária com o Estado — resume. 

Precisamos de um novo modelo, com metas claras e investimentos obrigatórios, para que a ferrovia volte a impulsionar o desenvolvimento.

CLÁUDIO BIER

Presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul

Jean Pimentel / Agencia RBS
Em alguns trechos, árvores cresceram sobre os trilhos e houve casos de furto de material.

Acionando a Justiça

Procurador da República, o gaúcho Osmar Veronese lida com o assunto ferrovias há mais de 20 anos. Há 10 dias ele pediu oficialmente providências à Rumo para que a empresa cesse com a remoção de trilhos e não transfira mais vagões e locomotivas para outros Estados. A Rumo respondeu que foi um processo pontual e que tinha autorização da ANTT. O procurador diz que obteve promessa de que a retirada  vai cessar, mas trabalha com a alternativa de multas diárias (caso continue a retirada de peças e insumos) ou de uma grande ação judicial por danos, a ser respondida pelos gestores da Rumo. O valor a ser exigido não foi calculado. O procurador considera estranho que em outras regiões do país a malha ferroviária tem crescido.

Jean Pimentel / Agencia RBS
Único trecho ferroviário em funcionamento hoje no RS liga a cidade de Cruz Alta ao porto de Rio Grande.

A Rumo ofereceu R$ 2,5 bilhões para manutenção do trecho que está operando, entre Cruz Alta e Rio Grande, desde que seja renovada a concessão. O Ministério Público Federal considera baixo o valor.

O inconveniente de uma ação judicial, pondera o ferroviário João Calegari, é que pode demorar anos. E a urgência de estancar o desmantelamento das vias férreas é para ontem. Até por isso, a preferência do empresariado e do poder público é pela negociação. Especialista em logística, o gaúcho Paulo Menzel acredita que o Rio Grande do Sul está defasado 60 anos em infraestrutura, sobretudo ferroviária, carente de um plano de longo prazo. E pensa que uma eventual judicialização pode deixar os gaúchos sem ferrovias pelos próximos 20 anos. O abandono prosseguirá, enquanto a discussão for nos tribunais, acredita ele.

— Apelar para a Justiça é parar o pouco que temos e esperar sabe-se-lá quanto tempo. Isso não é bom para ninguém — alerta.

O caso do Trem dos Vales

Omar Freitas / Agencia RBS
Trem está parado desde 2023, quando o Vale do Taquari foi severamente atingido por uma enxurrada.

O Trem dos Vales transportava turistas entre municípios da encosta da Serra, passando inclusive próximo ao famoso Cristo Protetor, em Encantado. A iniciativa sucumbiu às cheias. Estavam previstos 48 mil usuários em 2024, mas o comboio deixou de circular, prejudicando 2.044 empregos na região. O valor estimado para recuperação é de R$ 200 milhões, dinheiro que ninguém sabe quando e de onde sairá.

Omar Freitas / Agencia RBS
Rodovia passava por túneis e interligava várias cidades.

Sopro de esperança

Esta semana o governo federal anunciou um novo marco regulatório para as ferrovias. Ele estabelece um plano ferroviário para 2026 e 2027, com dois trechos no Rio Grande do Sul. Um deles é o Malha Sul-Corredor Rio Grande, com 880 quilômetros (que já existe e vai de Cruz Alta a Rio Grande). Aí a missão é de conservação. O outro é o Malha Sul-Corredor Mercosul, com 1,8 mil quilômetros (entre a cidade paulista de Iperó e Uruguaiana, na Fronteira Oeste). Esse religaria o Rio Grande do Sul ao centro do país e demandaria R$ 4,8 bilhões em investimentos: R$ 3 bilhões para reconstrução de trechos danificados, sobretudo, pela enchente. O restante seria para recuperar trechos não danificados, mas inoperantes há décadas.

Os leilões para esses trechos devem acontecer em junho de 2026. O prazo de concessão será de 35 anos (cinco a mais do que a concessão em vigor hoje na Malha Sul).

Omar Freitas / Agencia RBS
Esta semana o governo federal anunciou um novo marco regulatório para as ferrovias.

O vice-governador Gabriel Souza afirma que no anúncio federal não ficou claro se haverá aporte público. Ele considera essa intervenção fundamental para conseguir recuperar parte do que foi perdido na malha ferroviária gaúcha. E lembra que no Corredor Mercosul, com destino a Uruguaiana, está o trecho mais afetado pela enchente (que sobe pelo Vale do Taquari em direção a Passo Fundo).

Souza acredita que esse trecho só sairá do papel com ajuda financeira governamental. Isso porque esse trajeto talvez não tenha atratividade para a iniciativa privada, se comparado com o do litoral Paraná-Santa Catarina e o já existente Cruz Alta-Rio Grande.

— É nesse miolo do Vale do Taquari que temos os principais problemas. Precisa ter ajuda pública nisso. Difícil, porque existem restrições fiscais à União. Mas se deixar ao sabor dos interesses da iniciativa privada, só os trechos mais atraentes serão feitos. Seria importante ter uma concessão única para a Malha Sul, não fatiada em três, como o governo federal propôs. Aí teríamos a garantia do trajeto até Uruguaiana — constata o vice-governador.

O secretário nacional dos Transportes afirma que o governo federal deve investir até R$ 2 bilhões na Malha Sul.

Contraponto

O que diz a empresa Rumo

A empresa informa que, como operadora ferroviária de cargas, por ofício avalia estrategicamente os projetos da carteira de concessões apresentada pelo Governo Federal, sempre com base na viabilidade técnica, regulatória e econômica.

O futuro da concessão da Malha Sul é discutido no Grupo de Trabalho liderado pelo Ministério dos Transportes, que como Poder Concedente, é responsável por definir, junto aos demais atores envolvidos, alternativas de racionalização e otimização da malha após os severos danos provocados pelas enchentes de 2024. Vale destacar ainda que, em consequência das mudanças na dinâmica econômica e nas fronteiras agrícolas ao longo das décadas, alguns trechos já estavam inoperantes ou apresentavam operação deficitária desde a gestão estatal pela RFFSA, com prejuízo diário ao erário.

As decisões estruturais sobre trechos ativos, inoperantes ou ociosos cabem exclusivamente ao Ministério, que encaminhará suas definições ao Tribunal de Contas da União (TCU). O restabelecimento de operações em trechos inativos está condicionado à viabilidade econômica e técnica, além das diretrizes que vierem dos estudos conduzidos pelo Ministério dos Transportes.

Quanto ao remanejamento de trilhos para trechos que permanecem operacionais na Malha Sul, importante esclarecer que foi um procedimento pontual de otimização, já finalizado, em conformidade com a regulamentação do setor, com autorização expressa da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Como concessões e políticas ferroviárias são prerrogativas do Ministério dos Transportes, eventuais informações sobre planejamento e uso de trechos devem ser consultadas diretamente ao órgão.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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