A intoxicação por chumbo, responsável pela morte de 5,5 milhões de pessoas por ano atualmente, já afetava hominídeos e primatas há mais de 2 milhões de anos – e pode ter impedido os neandertais e outras espécies da linhagem humana de se comunicarem com clareza.
A conclusão é de um artigo publicado esta semana (15/10) na revista Science Advances. Nele, cientistas lançaram mão de dentes fossilizados, minicérebros e fluidos com vitaminas e proteínas para medir o impacto da contaminação por chumbo em várias espécies humanas. E inferir como isso pode ter afetado o desenvolvimento da linguagem.
O experimento indicou que uma mutação no gene chamado Nova 1 foi um ponto de virada para Homo sapiens. “Essa proteína foi igual em várias espécies durante milhares de anos, mas sofreu uma mutação na nossa, os humanos modernos, dando origem a uma variante mais resistente”, conta o biólogo brasileiro Alysson Muotri, do campus de San Diego da Universidade da Califórnia (UCSD), nos Estados Unidos, coordenador do estudo.
O Nova 1 é uma espécie de maestro ou guarda de trânsito microscópico, responsável por controlar o desenvolvimento dos neurônios e orientar como os trechos de RNA mensageiro são cortados e emendados antes de darem origem à molécula de RNA que orienta a produção de proteínas.
“O artigo tem um ponto de vista muito interessante, porque traz esse olhar da história evolutiva, mas tem implicações importantes para o entendimento atual de doenças como a esquizofrenia, a bipolaridade e o autismo, todos influenciados pelo funcionamento do gene Nova 1”, pontua o neurocientista Daniel Martins-de-Souza, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista no estudo de distúrbios neurológicos e psicológicos, que não participou do estudo.

Muotri LabMuito mais simples do que o órgão humano, minicérebro assume forma esféricaMuotri Lab
Os hominídeos pré-históricos passavam parte do tempo em cavernas, bebiam água que estava diretamente em contato com o solo ou com rochas e não lavavam as mãos depois de mexer na terra em busca de alimentos ou pedras que transformariam em artefatos. Se um desses locais estivesse contaminado com chumbo, era fácil ingeri-lo por acidente.
Dos 51 fósseis examinados na pesquisa, 73% tinham claros sinais de exposição ao chumbo, indicando que hominídeos e primatas da Europa, Ásia, África e Oceania foram contaminados ao longo da pré-história, entre eles H. neanderthalensis, H. sapiens, Australopithecus africanus e os enormes Paranthropus robustus e Gigantopithecus blacki.
“Sabemos que, desde o Império Romano, nós tínhamos muito contato com o chumbo”, diz Muotri. Naquela época, os humanos, sem saber dos malefícios dessa substância, usavam o elemento químico para adoçar vinhos. Eles também não tinham equipamentos de proteção individual para os ferreiros que forjavam espadas, martelos e outros instrumentos usando esse metal. “O que vimos agora, contudo, é que, mesmo na pré-história, essa exposição foi muito intensa.”
Sabendo disso, os cientistas tentaram entender os efeitos que a intoxicação por chumbo pode ter causado nos vários hominídeos. Para isso, usaram organoides cerebrais, estruturas criadas a partir de células-tronco que imitam funções cerebrais, cultivadas em um laboratório da UCSD. O grupo de Muotri também já usou esses minicérebros para entender o funcionamento de cérebros de neandertais.
Com o apelido popular de minicérebros, esses tecidos tridimensionais são cultivados em suspensão em um líquido avermelhado com vitaminas, aminoácidos, sais minerais, lipídios e tudo de que precisam para funcionar adequadamente.
“Essa é uma tecnologia bastante recente, mas que tem se tornado mais comum e dado resultados bastante interessantes”, diz Martins-de-Souza. “Dentro de todas as potenciais limitações, é algo no estado da arte”, acrescenta. As limitações ocorrem porque, apesar de esses tecidos servirem como uma boa simulação, o cérebro de um ser humano tem uma complexidade muito maior.

Joannes-Boyau et al., Science Advances, 2025Dentes de Gigantopithecus blacki e outros hominídeos foram analisados para medição de exposição ao chumbo: quanto mais vermelho, maior o teorJoannes-Boyau et al., Science Advances, 2025
O experimento foi composto por dois tipos de organoides: portadores de uma versão moderna do gene Nova 1 ou de uma versão arcaica. Neles, os pesquisadores introduziram doses de 10 micromolar (µM) e 30 µM de chumbo no líquido – o equivalente a doses baixas de contaminação nos dias atuais – e observaram as reações durante dois meses.
“Os dois organoides reagiram ativando genes importantes para o neurodesenvolvimento”, diz Muotri. No modelo arcaico, contudo, a intoxicação modificou centenas de genes ligados à aprendizagem, à memória e ao comportamento, afetou a comunicação entre neurônios e levou à morte dos neurônios FOXP2, que servem de ponte entre as estruturas cerebrais conhecidas como córtex e tálamo, e também são essenciais para a formação da linguagem. A intoxicação também afetou a forma como o Nova 1 orienta a seleção de moléculas para formação do RNA mensageiro.
Ali vimos que havia algo diferente, que o chumbo era altamente tóxico para a variante arcaica do Nova 1, mas que H. sapiens tinha uma resistência maior, pontua Muotri. A variante moderna, por sua vez, respondeu à exposição ao chumbo acionando mecanismos de proteção e reparo neuronal que fizeram com que sofresse menos alterações genéticas. Isso garantiu a proteção dos neurônios FOXP2 e do processamento de RNA. Além disso, os minicérebros representativos de H. sapiens apresentaram uma atividade elétrica mais estável após a contaminação e perderam menos conexões (ou sinapses) entre os neurônios, um sinal de adaptação a esse desafio ambiental.
Essa resistência pode ter conferido uma vantagem evolutiva essencial para H. sapiens, garantindo melhores formas de comunicação e coesão social. Um neandertal contaminado por chumbo conseguiria até formar uma imagem mental e vocalizar sons, mas teria dificuldades para articular palavras e frases, segundo a descrição de Muotri – se é que eles tinham essa capacidade, um debate ainda aberto entre arqueólogos. Seria uma dificuldade parecida com a enfrentada hoje por pessoas com uma síndrome rara causada por mutações no gene FOXP2, que causa muitas dificuldades na fala.
Isso impunha grandes desafios aos hominídeos. Os neandertais, por exemplo, tinham conhecimentos sobre ervas medicinais e primeiros socorros e usavam técnicas bem complexas para lascar pedras. Uma fala articulada poderia ser essencial para a transmissão desse conhecimento e a coesão de grupo. Mesmo com as prováveis dificuldades no desenvolvimento da comunicação oral, os registros indicam que eles sobreviveram por pelo menos 360 mil anos, período em que tiveram relações com H. sapiens e conseguiram ocupar grande parte da Europa e da Ásia.
Apesar desse passo importante para a compreensão do passado, ainda há uma série de mistérios a serem desvendados sobre as diferenças entre nós e nossos antepassados. “Existem 61 genes codificadores de proteína que diferenciam os humanos modernos das outras espécies hominídeas”, conta Muotri. Até agora, a equipe só analisou o Nova 1, então faltam outras 60 investigações.
Projeto
Retroelementos: Uma força motriz criando novidades genéticas no genoma humano e de camundongos (nº 18/15579-8); Modalidade Jovem Pesquisador – Fase 2; Pesquisador responsável Pedro Alexandre Favoretto Galante (SBSHSL); Investimento R$ 2.494.290,10.
Artigo científico
JOANNES-BOYAU, R. et al. Impact of intermittent lead exposure on hominid brain evolution. Science Advances. v. 11, n. 42. 15 out. 2025.