Uma infância regada à barro e banho de rio. Assim, Camili Aparecida, 17 anos, define seus tempos de criança, na comunidade de Silga, em Três Marias. A região, banhada pelo Rio São Francisco, é composta por comunidades ribeirinhas que tiravam destas águas o sustento, o lazer e a cultura, mas tudo mudou em 2019, quando aconteceu o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, cidade localizada a cerca de 330 quilômetros de distância da casa de Camilli. “Quando aconteceu este crime, eu era criança, mas já entendia se tratar de algo muito grave. De repente, tivemos que parar de pescar e brincar no rio. De repente, começamos a ver o peixe chegar morto na represa. Nos tiraram uma parte muito única da infância. O rio era onde todo meu povo buscava trabalho, mas também onde o povo se unia e se encontrava. Era o começo de tudo”, relembra Camilli.
Camilli e seu tio Fofão no Rio São Francisco
O desastre-crime provocado pela Vale derramou 13 milhões de metros cúbicos de rejeito tóxico na Bacia do Paraopeba, chegando até a Represa de Três Marias, que deságua no Rio São Francisco. Desde então, Camilli acompanha de perto o processo de reparação junto à sua família, sentindo na pele o que é ter uma juventude atravessada pela mineração. “Desde nova, eu frequento as reuniões comunitárias sobre o tema. Aos poucos fui entendendo a importância disso, porque só assim conseguimos lutar pelos nossos direitos, tendo informação e correndo atrás”. Atualmente, Camilli é a integrante mais jovem da Comissão Ribeirinhos do São Francisco, debatendo junto às demais as melhores soluções para as questões de sua comunidade e acompanhando a execução do Acordo de Reparação, firmado entre a Vale e o Poder Público em 2021.
As Comissões de Pessoas Atingidas são grupos de debate e organização social formados por moradores de comunidades impactadas pelo rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, em 2019. O principal papel das Comissões é atuar como multiplicadoras de informação e organizar a população local para participar de forma ativa e informada no processo de reparação dos danos. Camilli começou a frequentar esses espaços junto aos seus pais, participando das cirandas enquanto eles acompanhavam as reuniões. Depois de um tempo, começou a se envolver nos debates, sendo incorporada no grupo adulto de forma definitiva. A experiência fez Camilli entender que seria impossível fechar os olhos para certas injustiças. “Queremos os rios limpos de novo e queremos condições materiais para conseguir esperar por isso. Sou jovem e sei que tenho muita vida pela frente, então preciso participar das decisões que irão ditar o meu futuro”, afirma.
Rompimento afeta jovens de maneira diferente
Para Enya Barros, coordenadora do Instituto Guaicuy nos municípios de Curvelo e Pompéu, o rompimento afeta de forma particular a vida dos jovens. No contexto de comunidades rurais, ribeirinhas, indígenas e quilombolas, por exemplo, o desastre-crime acelera o processo de evasão rural e destituição de sentidos. “Com o rompimento, muitos tiveram os seus vínculos comunitários danificados. O rio, onde antes todos se encontravam, deixa de ser um lugar possível para o lazer. A pesca, a agricultura, deixam de ser um trabalho viável. A solução é ir embora, buscar novas oportunidades. Isso provoca uma interrupção da conexão com a própria cultura e coloca em risco a permanência no e do território”, explica. A mudança nos modos de vida destas pessoas, segundo Enya, provocou também o aumento de questões de saúde mental entre os jovens. “O desastre-crime modificou a dinâmica da infância e da adolescência em comunidades atingidas pela Vale, e isso adoece, traz impactos muito profundos, alguns já são perceptíveis agora. Outros se manifestarão no futuro, como adultos”, comenta.
A experiência concreta e abrupta de alteração da forma de viver destas pessoas é a realidade de milhares de jovens e crianças ao longo da Bacia do Paraopeba, da Represa de Três Marias e do Rio São Francisco. Marielly Namimia Aparecida e Maura Nabibia Aparecida, ambas de 17 anos, são moradoras do quilombo Saco Barreiro, em Pompéu, e também tiveram suas vidas modificadas pelo desastre-crime. A comunidade é composta por 23 famílias que vivem em suas casas de alvenaria, onde plantam em seus quintais abundantes em mandioca, café, pimenta dedo de moça, milho, feijão e outros tantos alimentos que a terra dá. A agricultura é a principal atividade econômica da região e é esta dinâmica de vida que Marielly e Maura viram ser alterada depois que o rejeito tóxico percorreu o Rio Paraopeba. “De repente as pessoas não conseguiam mais vender nas feiras porque todo mundo tinha medo de comprar os produtos, os turistas não vinham mais. Tudo mudou. A gente teve que buscar outras formas de viver”, contam.

Maura e Marielly com sua mãe Leandra
De acordo com as irmãs, muitas pessoas, principalmente jovens, já foram embora do quilombo em busca de outras oportunidades. “A gente quer sair e estudar. Mas queremos voltar, porque aqui é a nossa casa e temos o direito de viver uma vida feliz com a nossa comunidade. Sabemos que ir embora de vez é um risco para o nosso quilombo. Nós queremos ficar e lutar, porque sabemos o potencial que a nossa terra tem. Aprendemos tudo isso com a nossa mãe”, diz Maura.
Acompanhar a mãe em encontros e reuniões colocou as irmãs em contato com o projeto Mídia Jovem, do Instituto Guaicuy. A iniciativa oferece, durante os Encontros de Comissões e outros eventos, uma formação para os jovens presentes, que acompanham suas famílias nas reuniões. Durante as atividades, eles aprendem a importância da comunicação como ferramenta de luta, para que possam reivindicar de maneira eficiente que suas vozes sejam registradas e ouvidas.
“Aprendemos muito com o Mídia Jovem. Fiquei até chata pra tirar foto. Agora eu olho ângulo, olho luz, olho a medição do rosto. Não pode cortar o pé, nem o braço, não pode enquadrar de qualquer jeito. Foto é coisa séria. Eu fico querendo que a minha fique bonita que nem as que o pessoal do Guaicuy faz da gente. E também aprendemos o tanto que informar é importante. Saber pegar informação certa e saber divulgar as nossas, do nosso jeito. Com a nossa voz. Aprendi tanta coisa. Quando tem Encontro de Comissões eu vou e não quero nem voltar mais”, diz Marielly.

Mídia Jovem no Encontro de Comissões da Região 4
Direito previsto na Constituição
Apesar dos avanços trazidos pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ainda é fundamental difundir o conhecimento sobre os direitos de crianças e adolescentes e garantir que as leis sejam efetivamente aplicadas. Nelas está registrado que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Além disso, deve-se colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em contextos de vulnerabilidade, como o das comunidades atingidas pela mineração, a defesa dos direitos dos jovens torna-se ainda mais crucial. Diversidade cultural, religiosa e social, além de marcadores como raça, gênero e classe, influenciam diretamente as experiências dessas crianças e adolescentes. Mesmo diante de medidas de reparação, seus direitos seguem sendo violados, exigindo ações mais amplas e inclusivas para garantir sua proteção e bem-estar. “O rompimento impactou profundamente a vida de crianças e adolescentes, afetando sua cultura, tradições, brincadeiras e desenvolvimento. Reconhecê-los como sujeitos atingidos, garantindo sua escuta e participação, é essencial para uma reparação integral”, finaliza Enya Barros.