O cabo errado — não cumpriu as especificações, não foi adequado para transportar pessoas e não pôde ser usado com destorcedor — um processo de contratação desleixado e uma montagem sem procedimentos definidos e sem o controle de quem sabia (ou tinha obrigações de saber). É uma cadeia de erros graves, falhas, descuidos e falta de fiscalização que, de forma cumulativa, levaram ao acidente no elevador da Glória. A cronologia começa em 2022, mas a história das falhas na manutenção destes equipamentos é bem mais antiga e pode recuar, pelo menos, até aos anos de 1960.
O documento do GPIAAF (Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários) não é conclusivo sobre as causas da rotura da ligação do cabo à cabine, mas tem muita informação e dá faixas sobre como causas e as culpas deste acidente. Essas faixas apontam numa direção que o especialista da Ordem dos Engenheiros considera ser uma fase crítica: a ligação do cabo à cabine. Quem fez a pinha, como foi instalado e quem controlou esse o processo. Esta é também linha de investigação central no inquérito do Ministério Públicosabe o Observador.
Três meses depois do acidente, e com a ajuda do presidente do colégio de especialidade de Engenharia Mecânica da Ordem dos Engenheiros, o Observador faz um guião para reconstituir a combinação de fatores e variáveis que levaram ao acidente e considerar aqueles que, do ponto de vista de Carlos Neves, devem merecer mais atenção antes do resultado final da investigação do GPIAAF que só conhecido será no próximo ano.
O especialista da Ordem dos Engenheiros tem mais certezas sobre os motivos pelos quais o acidente causado em tragédia — a incapacidade do sistema de freios em operar como foi originalmente concebido como um dispositivo para travagem de emergência das cabines. Esta incapacidade deve ter sido “óbvia” para qualquer engenheiro que estivesse familiarizado com o modo de funcionamento do ascensor da Glória.
Com a ajuda do especialista, o Observador apresenta algumas explicações que já é possível tirar da muita informação disponibilizada pelo GPIAAF e que, segundo a leitura de Carlos Neves, permite identificar quatro momentos principais que conduziram ao acidente de 3 de setembro.
O engenheiro mecânico sinaliza ainda a existência de três tipos de causas — estruturais, operacionais e sistêmicas — e aponta a causa estrutural como aquela que explica porque é que o acidente ocorreu em tragédia.
A compra deste equipamento é muito detalhada no relatório preliminar ao acidente porque a investigação encontrou muitas falhas em todo o processo que descobriu na contratação, instalação e substituição do cabo errado em várias dimensões para os elevadores da Glória e do Lavra.
A aquisição foi feita à boleia de outra compra urgente de cabos para o elevador de Santa Justa. O departamento de compras da Carris (chamado de património e logística) recebeu as especificações corretas para estes equipamentos do gabinete de manutenção de modo elétrico, mas ao lançar a consulta para os vários elevadores apenas surgia nos anexos as especificações de cabos para o elevador de Santa Justa, que não eram as mesmas previstas ao da Glória. “Por uma razão que a Carris não conseguiu explicar”.
Entre as propostas recebidas em março surgiram discrepâncias face à consulta, nomeadamente ao nível do aço de graduação, e à norma de certificação (EN 12385-4 em vez da EN 12385-5) exigida.
Nenhuma das partes que fecharam a aquisição detectou diferenças entre a graduação do aço e respectiva norma de certificação entre o cabo pedido pelo departamento de manutenção e o que foi escolhido e comprado. As parâmetros do que se está a comprar devem ser selecionadas na análise das propostas, mas quando o departamento de compras faz um resumo das propostas à manutenção apenas indica preços e prazos, omitindo informação técnica.
A escolha recaiu na proposta que tinha um prazo mais rápido de entrega (por causa da pressa para a substituição do cabo de Santa Justa) e que era também uma das que fornecia os cabos errados. A decisão do departamento de manutenção foi baseada na informação incompleta que foi fornecida pela área das compras (DLP), “a qual pode ter tido impacto efetivo no acidente final do acidente”,
Os cabos foram entregues à Carris em agosto de 2022, tendo sido recebidos nos armazéns da empresa pelos responsáveis dos departamentos que fazem o controlo visual. O controle qualitativo é feito por pessoa da área de apoio técnico da direção de logística. De acordo com a informação recolhida, o gestor do contrato, o departamento de manutenção, não teve intervenção na receção. A investigação descobriu evidências de que, até 2020, “a área de engenharia responsável pelas especificações dos cabos a adquirir era chamada de intervir no processo de recepção e acessíveis estes. No entanto, desde aqueles dados não mais foi solicitado a participar nesse processo, por razão que não foi ainda possível apurar”.
Para Carlos Lopes, este aparente “pormenor” pode ser um “pormaior” e um “erro grave”. O cabo fornecido não tinha certificado para instalações destinadas ao transporte de pessoas e o certificado de conformidade do fornecedor dizia que não poderia ser usado com um destorcedor. “Caso o departamento de Engenharia tivesse participado na recepção do cabo facilmente teria detetado estas desconformidades”.
Carlos Neves considera que o momento da instalação “é o mais crítico” de todo o processo e foi desvalorizado pela Carris que o confiou aos funcionários da empresa externa de manutenção que não possuíam a qualificação técnica específica para esta operação, nem o devido acompanhamento por parte da Carris. O contrato com a MNTC incluía a montagem do cabo e a execução da pinha, a fase em que o cabo era fixado à cabine, limitando-se a Carris a fornecer o cabo.
A primeira instalação do novo tipo de cabo no elevador da Glória foi feita pelos trabalhadores da empresa externa de manutenção — MNTC (conhecida por Main). A fiscalização da Carris no terreno reparou nas diferenças de constituição e comportamento do cabo ao ser manuseado. O novo cabo era de alma de fibra, em vez de alma de aço, o que explica a sua maior flexibilidade e fácil manuseio. Após ser submetido ao peso das cabines, o cabo esticou face à dimensão original, o que obrigou a cortar 4,5 metros.
