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o dia 26 de dezembro de 2004, às 07:58, um terremoto de magnitude 9,3 atingiu o Sudeste Asiático, num ponto do Oceano Índico próximo à Indonésia. Um tsunami gigantesco seguiu os tremores, com ondas de até 30 metros de altura. Foi o maior desastre natural do século 21 – e um dos maiores da História.

Quase 228 mil pessoas em 14 países da região morreram. Nenhuma delas, porém, era da etnia Moken. Esse povo indígena habita as centenas de ilhas próximas da costa de Mianmar e da Tailândia e leva um estilo de vida nômade, conectado ao mar: pescam e coletam alimentos na água, migrando periodicamente para não esgotar os recursos. 

No dia da tragédia, esses exímios mergulhadores notaram que a maré regredia além do normal. No folclore Moken, isso é um mau presságio: o monstro marinho Laboon chegaria à areia, cuspindo água e devorando pessoas. Para escapar da criatura, era preciso subir para os pontos mais altos das ilhas, e foi o que eles fizeram. Não só os Moken sobreviveram ao devastador tsunami como ajudaram a salvar vidas, já que alertaram outras populações locais sobre a ameaça iminente. 

Os Moken, claro, sabem que o Laboon não é um monstro de verdade, e sim uma representação metafórica do tsunami. Mas foi com essa lenda, transmitida até hoje oralmente para as novas gerações (os Moken não têm tradição de escrita) que eles conseguiram preservar seu conhecimento. 

A lenda do Laboon é o que podemos chamar de “geomito” – uma história folclórica que remete a um fenômeno da natureza misturado com elementos fantásticos. Ao longo de toda a História, humanos de todas as etnias criaram narrativas do tipo para tentar descrever o mundo à sua volta. Mas só recentemente cientistas e historiadores passaram a reconhecer que essas histórias guardam informações valiosas, tanto sobre como povos antigos viam o mundo como sobre a própria natureza em si.        

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Nos próximos parágrafos, vamos entender como elementos reais podem ter inspirado mitos famosos – e o que a geomitologia revela sobre os conhecimentos tradicionais da humanidade. 

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Quem conta um conto… 

A percepção de que mitos folclóricos carregam um fundinho de verdade é antiga. No século 4 a.C., o filósofo grego Evêmero fundou o evemerismo, corrente que tentava explicar de forma racional as lendas locais. Ela defendia que deuses, heróis e guerras épicas da mitologia eram baseadas em pessoas e eventos reais, que foram exageradas e ficcionalizadas ao longo das gerações. 

No mesmo século, outro grego, o escritor Paléfato, já trazia uma explicação cética para o mito do herói Cadmo, suposto fundador da cidade de Tebas. Segundo a lenda, Cadmo teria matado um dragão e semeado seus dentes; desta “plantação”, surgiram os espartanos. 

“Paléfato argumentou que a dentição dracônica, na verdade, pertencia a um elefante pré-histórico, o mastodonte, cujos dentes são grandes, irregulares e assustadores”, diz Timothy Burbery, professor do Carleton College, em Minnesota (EUA), e autor do livro Geomythology: How Common Stories Reflect Earth Events (“Geomitologia: Como Histórias Comuns Refletem Eventos da Terra”). A explicação de Paléfato para a história de Cadmo, então, talvez seja o mais antigo caso em que um ser mitológico é ligado a um ser real.

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Associações como a de Paléfato, porém, são exceções: por muito tempo, os estudiosos não costumavam ir a fundo para entender quais elementos reais poderiam ter inspirado lendas específicas. E, quando existiam, essas proposições eram vistas como meras curiosidades, sem grande valor científico. 

Isso mudou em 1973, quando a geóloga americana Dorothy Vitaliano cunhou o termo “geomitologia”. A professora da Universidade de Indiana, nos EUA, com frequência via referências às culturas clássicas em artigos da área da geologia, mas sentia que ninguém ia a fundo para investigar essa relação multidisciplinar. Inspirada em Evêmero, ela decidiu iniciar uma nova linha de pesquisas. 

A geomitologia parte do princípio de que humanos preservavam a memória de eventos marcantes ou traumáticos por meio de histórias orais – que, ao longo do tempo, ganham contornos mágicos e metafóricos. Entram nessa conta fenômenos geológicos (terremotos, erupções vulcânicas, enchentes), astronômicos (cometas, meteoros, eclipses), fósseis e outros. 

Apesar de oficialmente existir há mais de 50 anos, a geomitologia ainda é um ramo relativamente pequeno, com poucos artigos publicados. Tanto profissionais das ciências naturais (como geólogos e paleontólogos) quanto das humanidades (como historiadores e antropólogos) podem se aventurar no ramo, investigando uma lenda ou outra. Mas os especialistas são escassos. 

O maior nome da geomitologia hoje é Adrienne Mayor, historiadora e folclorista da Universidade Stanford que publicou vários livros sobre o assunto. A seguir, vamos ver exemplos de geomitos propostos por ela e por outros especialistas. 

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A origem de Smaug

De Game of Thrones a São Jorge, os dragões estão por toda parte. Toda parte mesmo: criaturas com traços de lagartos ou cobras surgiram de forma independente em vários povos. 

Há diferenças, claro: alguns dragões têm asas e cospem fogo, como o clássico dragão medieval. A versão chinesa ostenta chifres e é associada ao mundo espiritual. Na Mesoamérica, a serpente alada representa um importante deus. 

As semelhanças gerais, porém, são inegáveis. Afinal, por que tantas culturas têm dragões? 

(Estevan Silveira/Superinteressante)

Uma resposta possível é que os humanos criaram esses monstros com base em fósseis de animais extintos (como os dinossauros), encontrados em todo o mundo. Esses ossos, combinados com nosso medo inerente de répteis como crocodilos e serpentes, seriam o ingrediente principal para a lenda – a imaginação humana faria o resto. 

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Os defensores da hipótese dos dragões-fósseis argumentam que ela também ajudaria a explicar as próprias diferenças entre esses seres mitológicos. Os típicos chifres dos dragões chineses, por exemplo, podem ter sido inspirados em fósseis de cervos, comuns no norte do país. 

Na Índia e no Paquistão, há lendas de dragões cobertos de joias raras que viviam debaixo dos Himalaias. Mayor sugere que elas vêm a partir de fósseis de girafas chifrudas extintas, como a Sivatherium. As tais joias incrustadas poderiam ser os cristais de calcita que frequentemente se formam em fósseis do local. 

À primeira vista, faz todo o sentido. Mas é preciso apresentar aqui uma das grandes ressalvas da geomitologia: é quase impossível comprovar essas associações. 

Acontece que as origens das tradições orais não podem ser datadas, e há pouquíssimos registros por escrito de culturas antigas desenterrando fósseis para entendermos como elas os interpretavam. Por causa desse grau de incerteza, e por suas proposições que não podem ser testadas, a geomitologia não é considerada uma ciência, mas sim uma área interdisciplinar das humanidades. 

Além disso, não dá para saber o que os humanos fizeram primeiro: criaram a lenda do monstro e aí associaram aos ossos que acharam – ou encontraram os fósseis e só depois inventaram as histórias, como forma de explicar a descoberta paleontológica? É tipo o dilema de Tostines: vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? 

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Feita a ressalva, podemos continuar. Existem alguns registros de povos antigos que relacionam achados de fósseis com dragões. Os mais sólidos vêm da China. O Livro das Mutações, clássico manual místico escrito no primeiro milênio a.C., cita que dragões podem “aparecer nos campos”, e que isso é um bom sinal – e alguns estudiosos hoje interpretam essas “aparições” como fósseis desenterrados. Outros manuais da época indicam que os ossos moídos dessas criaturas teriam poder curativo. 

De fato: ossadas dracônicas (long gu) se tornaram uma sensação na medicina chinesa da época, a ponto de sua escavação como se fossem um minério virar um negócio no Império. Até hoje, em algumas regiões do país, eles são importantes.

Não há descrições exatas sobre a aparência desses ossos. Mas, ao que parece, “dragão” era um termo generalizado, e não só usado para criaturas com características reptilianas. Por isso, Mayor acredita que os cervos chifrudos tenham sido os achados mais comuns nessa empreitada, embora não os únicos.

Grifos e ciclopes 

Até aqui, falamos de exemplos genéricos, que relacionam fósseis distintos à ampla categoria dos dragões. É uma associação bastante razoável, e por isso pouco contestada. 

Mas também há geomitos que podem ter origens mais específicas. É o caso dos ciclopes, os gigantes de um olho só da mitologia grega que ajudaram Zeus na sua guerra contra os Titãs e aterrorizam Odisseu em sua jornada. 

Em 1914, o cientista austríaco Othenio Abel, um dos fundadores da paleobiologia, foi o primeiro a propor que caveiras de elefantes extintos podem ter sido a inspiração para esse monstro. Por um motivo óbvio: o crânio dos paquidermes tem um enorme “buraco” no centro, por onde sai a tromba [veja na ilustração abaixo]. As cavidades dos olhos, por sua vez, ficam nas laterais e são quase imperceptíveis. 

Ilustração, em fundo multicolorido, de criaturas da mitologia. Vê-se um Grifo e um Ciclope diante de alguns crânios.
(Estevan Silveira/Superinteressante)

Hoje, elefantes só existem na Ásia e na África, mas, no passado, os elefantes-pigmeus, de tamanho reduzido, eram comuns em ilhas da Europa – inclusive na Sicília, ilha que, segundo a mitologia, era o lar dos ciclopes. Esses bichos, extintos antes dos humanos chegarem, viviam sobretudo em cavernas, o mesmo cenário onde Odisseu encontra o monstro de um olho só. 

Outro exemplo é o dos grifos, criaturas metade leão, metade águia. Esses seres altivos estavam presentes em várias culturas da Antiguidade, inclusive na mitologia grega, mas sua origem possivelmente remonta aos sacas (ou citas), um povo nômade iraniano que habitava grande parte da Ásia Central e fazia comércio com várias civilizações. No processo, espalhava as suas lendas.

Na década de 1990, Adrienne Mayor criou uma hipótese sobre a invenção dos grifos. Segundo ela, é possível que mineradores de ouro no Deserto de Gobi, na Ásia, tenham encontrado fósseis do dinossauro quadrúpede Protoceratops, abundante na região e facilmente reconhecível por causa do seu “bico” que lembra o de uma ave [veja na ilustração acima]. O maior argumento de que ele foi a inspiração para a lenda, além da aparência de pássaro, é que, na mitologia, grifos são muitas vezes descritos como guardiões de reservas de ouro. 

A origem cretácea do grifo, porém, é polêmica. Num artigo de 2024, pesquisadores da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, mapearam os locais onde fósseis de Protoceratops foram encontrados no último século e compararam com as minas de ouro da região – e descobriram que, na verdade, essas áreas são distantes umas das outras, enfraquecendo o argumento original de Mayor. 

“Nem todas as criaturas mitológicas exigem explicações com fósseis”, argumentam os autores. Da mesma forma, há quem duvide dos ciclopes-elefantes. Como já citamos, essa desconfiança é normal, fruto do caráter especulativo da geomitologia. 

Enchentes e vulcões

Para além dos fósseis e suas polêmicas, mitos também podem ter origem em fenômenos geológicos. O mais famoso é a história de criação do Lago Crater, no estado americano do Oregon. Segundo lendas do povo indígena Klamath, o corpo d’água foi criado após um conflito entre os deuses Shasta e Mazama. Ao jogar uma montanha inteira sobre Mazama, Shasta o destruiu. O que restou na região foi o lago. 

Hoje, sabemos que o local é remanescente de um vulcão que colapsou há mais de 7 mil anos. Isso significa que os ancestrais dos Klamath provavelmente presenciaram a destruição da montanha – e passaram a história de geração em geração por milênios. 

Da mesma forma, mitos havaianos sobre a deusa Pele, associada aos vulcões, preservam resquícios da história geológica do arquipélago. Diz a lenda que, para escapar da sua irmã e feroz rival Namaka, ligada aos oceanos, Pele fugiu para a ilha de Kauai, mais ao norte do Havaí, e fundou seu primeiro lar vulcânico. Ainda perseguida pela irmã, precisou migrar de ilha em ilha, sempre na direção sudeste. Por fim, abrigou-se no vulcão Kilauea, onde acredita-se que viva até hoje. 

Coincidentemente, a jornada da deusa segue a ordem exata da formação do arquipélago havaiano: quanto mais ao norte, mais antiga a ilha; quanto mais ao sul, mais nova. Além disso, cientistas já descobriram que histórias sobre batalhas de Pele contra outras divindades parecem descrever episódios de erupções vulcânicas com bastante precisão temporal. 

Ilustração de um deus vulcão observando uma tempestade no mar.
(Estevan Silveira/Superinteressante)

A geomitologia pode ajudar a explicar também o mais universal dos mitos: o dilúvio. Culturas muito distintas, nos cinco continentes, têm histórias sobre uma enchente monumental e avassaladora. No Antigo Testamento e em mitos mesopotâmicos, os humanos sobreviveram após um único escolhido ter criado um barco; na China, um sábio imperador construiu as primeiras barragens para frear as cheias dos rios; nos povos tupis, homens e mulheres subiram em palmeiras para se salvar.   

A constatação da universalidade dessa história levou muitos pensadores da Idade Moderna a criar a hipótese de que, de fato, houve um episódio de uma enchente global na história da humanidade. Hoje, sabemos que não é verdade. É provável que essas lendas tenham origem independente.

(Uma exceção: as histórias de Noé, de Gilgamesh e de Atrahasis são muito semelhantes entre si, tendo em comum elementos como a arca e a pomba da esperança. É provável que as três compartilhem uma mesma origem. Leia nossa reportagem sobre a universalidade do mito do dilúvio de 2020

Não é absurdo pensar que vários povos desenvolveram esse mito. Afinal, enchentes acontecem (e são devastadoras) no mundo todo – ainda mais se considerarmos que os humanos tendem a se aglomerar e a plantar próximo a fontes de água. 

Há uma civilização antiga que não tinha um mito de dilúvio: os egípcios. Mas é fácil explicar por quê: o Rio Nilo tem cheias bem previsíveis. As enchentes não eram um problema para eles.

Adrienne Mayor adiciona uma camada ainda mais interessante na história dos dilúvios. Segundo ela, fósseis marinhos encontrados em montanhas ou ambientes longe do mar, como conchas, podem ter inspirado povos antigos a imaginar uma época em que tudo estava sob a água. 

De fato, figuras como Leonardo da Vinci e Santo Agostinho escreveram sobre esse mistério, o que comprova que a questão já intrigava os pensadores do passado. Hoje, sabemos que esses fósseis estão lá não porque a Terra já foi toda inundada – eles se formaram no fundo do mar, mas, ao longo dos milhões de anos, as movimentações das placas tectônicas transformaram as profundezas do oceano em montanhas e terra firme. 

Histórias renegadas

A geomitologia pode parecer um passatempo de menor importância, uma mera coleção de curiosidades do passado ou uma linha de pesquisa imprecisa demais para ser levada a sério. Mas seus estudiosos defendem que ela valoriza os conhecimentos tradicionais de povos indígenas mundo afora, por muito tempo apagados dos livros de ciências. 

Durante toda a história da paleontologia, inclusive nos dias de hoje, muitos cientistas trabalham em colaboração com guias nativos, que guardam conhecimentos valiosos da região por meio de suas lendas. Os geomitos revelam os métodos engenhosos que os humanos criaram para investigar o mundo muito antes da invenção do método científico. 

Não só. “A geomitologia pode contribuir para a ciência complementando, orientando e até mesmo corrigindo algumas de suas descobertas”, diz o professor Burbery. 

Ele traz um exemplo prático: em 1899, quando os primeiros europeus descobriram as crateras de Henbury, no interior da Austrália, acreditaram se tratar de buracos feitos pelos povos da região. Mas os aborígenes australianos contavam outra história. Aquelas crateras teriam sido criadas por “demônios de fogo” que caíram do céu e se recusaram a beber a água que se acumulava ali para não ingerir “pedaços de ferro”. 

Em 1931, cientistas encontraram chumbo na região e concluíram que as crateras surgiram de fragmentos de meteorito que atingiram a região há 5 mil anos. Se os geólogos tivessem ouvido os nativos, o erro teria sido corrigido bem antes.

Referências: livros The First Fossil Hunters e Fossil Legends of the First Americans, de Adrienne Mayor 

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By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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