Mais de 98% das 133 gestantes indígenas já analisadas, até maio de 2025, apresentaram níveis de mercúrio acima do limite (Foto: Reprodução/Amazônia Sem Garimpo)
23 de junho de 2025
Fabyo Cruz – Da Cenarium
BELÉM (PA) – Gestantes e bebês indígenas Munduruku, na região do médio Tapajós, no oeste do Pará, estão sendo expostos a níveis preocupantes de mercúrio – substância altamente tóxica usada em atividades de garimpo ilegal. Os dados são parte de um estudo conduzido pelo grupo de pesquisa “Ambiente, Diversidade e Saúde”, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), que desde 2019 acompanha os impactos da contaminação por mercúrio na saúde da população indígena.
Os resultados parciais, apresentados em oficina realizada entre os dias 11 e 13 de junho deste ano em Itaituba (PA), apontaram que 98,5% das 133 gestantes indígenas analisadas, até maio de 2025, apresentaram níveis de mercúrio acima do limite considerado seguro pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Ministério da Saúde (MS), que é de 2,0 microgramas por grama (µg/g) de cabelo.
A média registrada entre elas foi de 9,9 µg/g e cerca de 41% dos resultados analisados apresentaram níveis superiores a 10 µg/g. O valor mais elevado identificado foi de 31 µg/g. Em uma das aldeias localizadas nas proximidades de áreas de garimpo, nove em cada dez mulheres estavam com níveis elevados da substância.
Entre os 70 bebês já avaliados, apenas dois apresentaram níveis dentro da faixa considerada segura. A média foi de 5,8 µg/g, com quase metade das crianças (47%) acima de 6 µg/g e 7% ultrapassando os 10 µg/g. Na aldeia próxima à atividade garimpeira, todos os bebês estavam contaminados.
A pesquisa faz parte de um estudo longitudinal – metodologia em que as participantes são acompanhadas por um longo período – com o objetivo de investigar os efeitos da exposição pré-natal ao metilmercúrio no desenvolvimento neurológico de crianças indígenas. As gestantes são monitoradas desde o primeiro trimestre de gravidez, e os bebês continuam sendo acompanhados por dois anos após o nascimento, com avaliações realizadas por neuropediatras e neuropsicólogos.

“A ideia desse estudo foi a gente recrutar mulheres gestantes ainda no início da gestação e acompanhar tanto os níveis de mercúrio quanto os problemas de saúde ao longo do tempo. Depois que a criança nasce, ela também é monitorada por dois anos, com foco em possíveis atrasos no neurodesenvolvimento”, explicou a pesquisadora Ana Cláudia Vasconcellos, da EPSJV/Fiocruz, em entrevista à CENARIUM.
Impactos
A especialista destacou que os impactos da exposição ao mercúrio durante a gravidez podem ser graves e irreversíveis. “Quando uma mulher grávida come peixe contaminado com metilmercúrio, a criança pode nascer com sérios problemas cognitivos. E esses danos, adquiridos ainda dentro da barriga da mãe, são completamente irreversíveis”, alertou. “Muitas vezes, são problemas silenciosos. A criança cresce com dificuldades na escola ou de socialização e ninguém relaciona isso à contaminação. Mas, na verdade, essa criança foi condenada ainda no útero a ter um desempenho intelectual comprometido”, afirmou.

Alimentação contaminada
O metilmercúrio, principal forma da substância identificada nos casos estudados, não está presente na água, mas sim acumulado na cadeia alimentar aquática, especialmente em peixes carnívoros, como o tucunaré, pirarucu, filhote e piraíba. Esses peixes, segundo a especialista, concentram o mercúrio liberado no meio ambiente pelo uso indiscriminado de mercúrio metálico durante a extração de ouro em áreas de garimpo. Quando ingerido com frequência, o metilmercúrio pode causar efeitos neurológicos diversos.

“É um erro comum pensar que o mercúrio contamina as pessoas pela água do rio. Não é assim. A contaminação acontece pela ingestão de peixes e outros animais da biota aquática”, reforça Vasconcellos. Ela ressalta que “a água tem níveis muito baixos, quase indetectáveis, porque o mercúrio vai para o sedimento ou é rapidamente incorporado pelos organismos aquáticos”.
Sintomas
Entre os sintomas relatados em adultos estão: perda de sensibilidade, alterações motoras, dificuldades de coordenação e problemas cardiovasculares. “O mercúrio pode provocar hipertensão, maior risco de infarto e, nos casos de exposição crônica, problemas neurológicos como tremores, insônia e alterações na visão e na audição”, detalhou.
Em crianças expostas ainda na gestação, os danos podem ser ainda mais severos. “Se os níveis forem muito altos, a criança pode até nascer com paralisia cerebral, como aconteceu em Minamata, no Japão. Na Amazônia, ainda não temos certeza se isso está ocorrendo, mas há indícios e hipóteses sérias de que casos semelhantes possam estar acontecendo”, disse a pesquisadora.
Prevenção
Como a contaminação é crônica e não existe medicamento eficaz para eliminar o mercúrio do organismo, a principal medida de prevenção indicada pela equipe da Fiocruz é a mudança na dieta. A recomendação é que gestantes e pessoas com altos níveis da substância evitem o consumo de peixes carnívoros e priorizem espécies herbívoras, como pacu, tambaqui e matrinxã, menos suscetíveis à contaminação.

“Se a pessoa tem níveis elevados de mercúrio ou se é uma mulher grávida, ela precisa parar de consumir peixes carnívoros. Não pode comer piranha, tucunaré, filhote, pirarucu. Já os peixes herbívoros, esses podem ser consumidos diariamente”, orienta a pesquisadora. “Isso ajuda a proteger o feto e, no caso dos adultos, permite uma redução gradual da contaminação”, completou.
Saúde indígena
A pesquisa, coordenada pelo médico e pesquisador Paulo Basta, seguirá até, pelo menos, o segundo semestre de 2026. Também está em andamento a implementação de um manual técnico voltado a profissionais de saúde indígena, lançado em maio de 2025. O material orienta equipes de polos base e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) a identificar sinais clínicos relacionados à contaminação por mercúrio e a acolher os pacientes de forma adequada.
“O atendimento a indígenas expostos ao mercúrio exige preparo. Por isso, elaboramos um manual que orienta os profissionais a reconhecer sintomas, fazer acolhimento e recomendar mudanças alimentares”, explicou Vasconcellos. “É uma ferramenta fundamental para o SUS indígena enfrentar esse problema crescente”, acrescentou.