Em um artigo publicado pelo Brasil 247, o jornalista Jefferson Miola apresenta suas perspectivas para o segundo turno das eleições presidenciais chilenas, que serão disputadas entre Jeanette Jara, do Partido Comunista do Chile, e José Antonio Kast, do Partido Republicano. O texto em questão, intitulado A eleição no Chile sob o espectro de Pinochet, apresenta a situação dramática da Frente Ampla chilena, que terá, segundo as projeções, de 35 a 40% dos votos no segundo turno, estando em franca desvantagem perante a extrema direita:
“A gênese dessa situação eleitoral desfavorável para a Frente Ampla já podia ser percebida logo nos meses iniciais do governo Boric. A derrota por 62% a 38% da proposta de nova Constituição pós-pinochetista em 4 de setembro de 2022, apenas seis meses depois da posse de Boric, foi um sinal relevante da mudança de ventos. O sentimento de urgência social da rebelião de 2019, que catapultou a luta anti-neoliberal no berço do neoliberalismo e impulsionou a vitória do processo constituinte e, à continuação, a eleição de Boric à presidência do Chile, foi frustrado de modo acelerado ante as escolhas do governo recém empossado, que não sinalizou claramente com uma perspectiva antineoliberal para conseguir atender as aspirações históricas legítimas do povo chileno.”
Sim, o governo Boric contribuiu e muito para a atual situação da esquerda chilena. No entanto, é preciso levar em consideração que a capitulação veio de antes. O governo Boric já é, na verdade, o resultado desta capitulação. Quando ele assume o governo, a esquerda já havia sido derrotada.
As mobilizações de 2019 foram uma das mais importantes da América do Sul desde o fim do ciclo de levantes contra a política neoliberal nas décadas de 1990 e 2000. Os atos de rua, que tinham um caráter semi-insurrecional, tinham plenas condições de derrubar o regime pinochetista. No entanto, as direções da esquerda à época se recusaram a levantar a palavra de ordem central: o “Fora Piñera!”. Isto é, a derrubada do presidente Sebastián Piñera, um neoliberal responsável por um governo altamente repressivo.
Esta capitulação foi decisiva. Ao manter-se no governo, Piñera conseguiu organizar o Estado para reagir às manifestações, de tal modo que as eleições presidenciais já ocorreram em um momento de refluxo do movimento. Em uma nova capitulação, a esquerda chilena organizou um bloco unificado com várias forças direitistas, permitindo que a burguesia influenciasse no processo de escolha de seu candidato presidencial. Com este formato, venceu as primárias chilenas Gabriel Boric, um direitista de aparência esquerdista que nada tinha a ver com as mobilizações de 2019.
Boric, na verdade, manteve os prisioneiros políticos daquela manifestação durante o seu governo.
Quando ocorre o processo constituinte, a esquerda já se encontrava em grande desmoralização. Tanto por ter mantido Piñera no poder, quanto pelo governo neoliberal e pró-imperialista de Boric, que sempre se preocupou em seguir uma política de alinhamento com os Estados Unidos em questões-chave, como a soberania venezuelana.
Fazer este retrospecto é importante porque o autor, incapaz de analisar os acontecimentos, chega à seguinte conclusão:
“A colheita poderá ser feita em 14 de dezembro deste ano, no segundo turno, no que poderá ser um enorme desastre para a democracia do Chile, da América do Sul e do mundo.”
Não existe “democracia” no Chile. O país vive praticamente a mesma constituição do ditador militar Augusto Pinochet. O presidente “esquerdista” manteve presos políticos que lutaram contra um governo furiosamente reacionário. O país se notabilizou pelo alto índice de suicídio entre idosos por causa da destruição da Previdência.
Mas o mais importante de tudo é que se a preocupação do autor é o avanço da extrema direita, este avanço já está consolidado, independentemente do resultado eleitoral. A eleição de 14 de dezembro não mudará em absolutamente nada o panorama político: o Chile se encaminha a passos largos para uma ditadura. Os erros da esquerda são apenas parte da explicação: há uma ofensiva geral do imperialismo sobre a América Latina. A capitulação da esquerda apenas faz com que esta ofensiva se desenvolva de maneira mais rápida.
A ideia de que a eleição “poderá ser um enorme desastre” indica que o desastre poderá ser evitado pela via eleitoral. O fato é que a candidatura de Jara representa a mesma política fracassada de Boric. Trata-se, na verdade, de uma versão ainda piorada desta política, pois a coalizão é ainda mais direitista, com a participação da Democracia Cristã.
Miola diz que “a vitória de Jeannette Jara é um imperativo para a democracia chilena, e também para a resistência continental ao fascismo”. Não. A continuidade da Frente Ampla servirá apenas para desarmar os trabalhadores perante o fascismo. É preciso organizar os trabalhadores com total independência da direita, com uma luta implacável e consequente contra a extrema direita, mas também contra o neoliberalismo e o imperialismo.
