A gestores municipais, foi proposto Termo de Compromisso para aprimorar a proteção da saúde pública
Ministério Público Federal no Pará
Em um encontro marcado pela apresentação de dados científicos alarmantes e por um depoimento emocionante que traduziu a urgência da crise humanitária, especialistas, gestores públicos e representantes da sociedade civil se reuniram em Santarém (PA), no último dia 30, para debater o futuro da vigilância em saúde para o enfrentamento da contaminação por mercúrio na Bacia do rio Tapajós.
O debate, realizado na sede do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) no município, foi promovido pelo Grupo de Trabalho (GT) Saúde do Fórum Paraense de Combate aos Impactos da Contaminação Mercurial na Bacia do Tapajós, uma articulação liderada pelos Ministérios Públicos Federal (MPF), Estadual (MPPA) e do Trabalho (MPT).
O objetivo central do evento foi tirar da invisibilidade um problema de saúde pública que, apesar de amplamente documentado pela ciência, ainda sofre com a subnotificação nos sistemas oficiais. Como destacou na abertura a procuradora da República Thaís Medeiros, coordenadora do fórum, a iniciativa busca sensibilizar para uma realidade que já existe e buscar compromissos para medidas concretas de enfrentamento.
Para materializar essa cooperação, foi proposto um Termo de Compromisso aos gestores públicos, elaborado pelo MPF. A procuradora da República explicou que o documento representa um compromisso político para que as instituições reconheçam a grave realidade da contaminação e atuem de forma proativa no combate a esta multifacetada problemática de saúde pública e ambiental.
Segundo ela, a intenção é firmar “um compromisso de reconhecimento desse cenário e um compromisso de, a partir daqui, trabalhar conjuntamente em medidas de capacitação, informação, divulgação, medidas concretas de enfrentamento“ à crise de saúde pública e ambiental que afeta a região.
Problema complexo e silencioso – O panorama da contaminação foi detalhado pela professora Heloísa Meneses, da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Ela explicou que, embora o garimpo ilegal seja a fonte mais conhecida, o problema é mais complexo, envolvendo também desmatamento, queimadas e a instalação de hidrelétricas. “Se a gente só resolver o problema do garimpo, a gente não resolve o problema do mercúrio”, alertou, enfatizando que toda a cadeia alimentar amazônica está em risco.
A dimensão da exposição em populações vulneráveis foi apresentada pelo pesquisador Paulo Basta, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde. Dados parciais de um estudo em andamento com gestantes e recém-nascidos do povo indígena Munduruku revelaram que as gestantes apresentam, em média, níveis de exposição cinco vezes superiores ao limite de segurança estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“As crianças estão expostas ao mercúrio na barriga da mãe, quando nascem, seguem expostas pela amamentação e, depois, pela alimentação complementar”, explicou o pesquisador, ressaltando o risco de danos neurológicos irreversíveis.
“Não quero morrer de mercúrio” – Em seu depoimento, a coordenadora do Conselho do Território Kumaruara, Zenilda Kumaruara, declarando-se ela mesma contaminada, deu uma face humana aos dados apresentados. “Eu não quero morrer de mercúrio”, afirmou, antes de ler uma carta-denúncia em nome de dez aldeias.
“Nosso povo sempre viveu da caça e da pesca. Entretanto, hoje nos sentimos inseguros. A dragagem e o garimpo ilegal vêm destruindo o nosso rio, trazendo consigo o mercúrio que contamina os peixes que alimentam nossas famílias”, diz a carta, que relata o aumento de abortos espontâneos, problemas congênitos e câncer na população. “Não é possível aceitar que paguemos o preço com nossas vidas pelo chamado desenvolvimento econômico”, concluiu.
A urgência foi reforçada pelo coordenador do Distrito de Saúde Indígena (Dsei) Rio Tapajós, Haroldo Saw Munduruku. “É urgência, é emergência, porque é a vida que está em risco, não só a da população indígena, mas a de todos os ribeirinhos”, clamou.
Respostas e propostas de ação – A representante do Ministério da Saúde, Jaqueline Martins, que atua na vigilância em saúde de populações expostas a contaminantes químicos, principalmente o mercúrio, apresentou as ações do governo federal. Ela detalhou o Plano de Enfrentamento ao Mercúrio, que está em fase final de elaboração e prevê ser lançado durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), em Belém.
O plano se estrutura em seis eixos, incluindo vigilância das populações expostas ou potencialmente expostas ao mercúrio, atenção integral a essas populações, vigilância laboratorial, estudos e pesquisas, comunicação e educação em saúde, e articulação intersetorial e cooperações. Martins também anunciou avanços na atualização da ficha de notificação de intoxicação exógena, que passará a ter um campo específico para o mercúrio, visando facilitar o registro e combater a subnotificação.
“Isso está sendo tratado com prioridade e é o mais urgente: a construção de uma linha de cuidado, organizando o serviço desde a unidade básica de saúde até a questão hospitalar”, garantiu, em resposta direta à preocupação de Zenilda Kumaruara sobre o início do atendimento.
Durante o evento, uma das atividades realizadas foi conduzida pela gestora do Projeto Saúde e Alegria em Santarém, Sônia Maria Bonici. No painel que tratou de impactos locais e percepções de saúde de povos e comunidades tradicionais potencialmente expostos ao mercúrio, ela realizou uma dinâmica, dividindo alguns grupos para que apresentassem propostas para o combate à contaminação por mercúrio.
O grupo composto pelo Movimento Tapajós Vivo, representantes da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), do Conselho Indígena do Território Kumaruara, da secretaria municipal de Saúde de Santarém, por exemplo, apresentou como propostas a realização de testagem em massa nas comunidades identificadas como as mais impactadas pela contaminação mercurial, a ação integrada entre União, estado e municípios para implementar políticas de segurança alimentar, a notificação de casos de exposição ao mercúrio, dentre outras.
Termo de compromisso – O principal encaminhamento prático do encontro foi a apresentação de um Termo de Compromisso destinado aos secretários de saúde dos municípios da bacia do Tapajós e à Sespa.
O documento propõe que os gestores se comprometam a reconhecer a gravidade da situação, ofertar capacitações periódicas aos profissionais de saúde, alimentar os sistemas de informação e designar um ponto focal técnico para facilitar a comunicação.
Ao final, o fórum deliberou que o Termo de Compromisso será enviado a todos os municípios convidados, juntamente com um ofício recomendando a realização de capacitações ampliadas para os profissionais de saúde, com o apoio técnico dos especialistas do GT.
Ampliação de testagens e pesquisas – Além do termo de compromisso apresentado aos gestores de saúde dos municípios, foi definida, como encaminhamento, a expedição de ofícios para movimentos sociais e associações representativas das regiões do Baixo, do Médio e do Alto Tapajós para colher manifestações quanto ao interesse para a realização de pesquisas em suas regiões sobre a contaminação por mercúrio.
Também serão oficiados Fiocruz, Ufopa, Instituto Evandro Chagas (IEC) e Instituto Amazônico do Mercúrio (Iamer) para dialogar com o MPF sobre um planejamento para a expansão de pesquisas nessas regiões.
“Conseguimos plantar a semente que a gente queria”, resumiu a professora Heloísa Meneses no encerramento. “Ver representantes das secretarias de saúde reconhecendo a importância da notificação e da capacitação mostra que estamos muito mais perto de uma solução do que antes, quando nem se falava sobre isso”.
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Foto: MPF