Um ex-preso político julgou considerar na rua um antigo algoz que o torturava na prisão. A partir daí, fica obcecado com a captura do suposto agente, recorrendo a outros ex-presos que sofreram em suas mãos, para tentar identificá-lo sem erro. Dirigido pelo iraniano Jafar Panahio filme foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Nos cinemas.
O comentário é de Neusa Barbosajornalista e crítica de cinema, publicado por CineWeb11/02/2025.
Eis o comentário.
Por 15 anos, o diretor iraniano Jafar Panahi esteve proibido de viajar ao exterior, uma das muitas restrições de quem, nesse período, foi condenado à prisão, esteve em solitária, fez greve de fome e foi proibido de filmar – o que não impediu que continuasse realizando filmes como Isto Não é Um Filme, Táxi Teerã, Três Faces e Sem Ursoscolhendo prêmios em festivais internacionais como Cannes e Berlim.
A proibição foi suspensa em 2025 e Panahí poderia, em maio último, estar presente na concorrida sessão oficial de seu novo filme em Cannes, Foi apenas um acidenteque terminou vencendo a Palma de Ouroconcedido por um júri presidido pela atriz Juliette Binoche. Em 2010, quando o cineasta estava preso no Irã e por isso impedido de vir a Cannes para integrar o júri, a atriz francesa atrai um cartaz com o nome dele ao receber o próprio prêmio de interpretação, por outro filme iraniano, Cópia Campode Abbas Kiarostami.
Toda essa participação contribuiu a favor do filme, mas nada disso deve obscurecer o fato de que a obra fala por si só, em sua complexidade política e força dramática. Não enredo, um homem, Vahid (Vahid Mobasseri), julgue considerar um antigo algoz que o torturava na prisão – que se deu também por motivos políticos. A partir daí, fica obcecado com a captura do suposto agente, Eghbal (Abraão Azizi), recorrendo a outros ex-presos que sofreram em suas mãos, como a fotografia Shiva (Mariam Ashfari), uma noiva em seu vestido de casamento, Gol (Hadis Pakbaten)i, e outro homem, Hamid (Maomé Ali Eliasmehr), para garantir-se de que sua identidade, sobre a qual restam dúvidas.
Numa trama que se desenvolve entre um caminhonete, como ruas da cidade e alguns lugares ermos, Panahí constrói seu drama ético, que suscita todo tipo de questão. Se de um lado é um thriller – este homem é ou não o agente Eghbal? -, também é um relato moral. Até que ponto é legítimo que as vítimas exercitem o olho por olho, dente por dente, contra aqueles que, contra elas, impuseram agressões, execuções encenadas e ameaças, inclusive de estupro?
O cineasta dá voz às vítimas, que carregam cicatrizes profundas, porque os efeitos da tortura, de alguma forma, nunca se dissipam completamente, especialmente os psíquicos. E cada uma tem seu entendimento sobre a vingança. Mas também, a certa altura, se dá voz a este agente do Estado, que perdeu uma perna de luta na Síria e tem uma noção bastante pessoal do que é servir ao governo. No auge da sua forma como roteirista e diretor, Panahí cria um filme denso, cheio de camadas, inclusive de humor – a noiva e a passagem pelo hospital são dois desses momentos exemplares, sem nunca comprometer o grande arco de valores sendo colocado no primeiro plano.
A própria filmagem de Foi apenas um acidente região cheia de percalços. Mesmo filmando em parte dentro de um caminhonete, também para atrair menos atenção, a equipe recebeu a visita de fiscais e se mobilizou para esconder o filme, prevenindo a hipótese de que fosse confiscado – conforme relatos do diretor na coletiva em Cannes. Depois do anúncio de que o filme iria para Cannes, sobretudo nas duas semanas anteriores, vários membros da equipe, como as atrizes Hadis e Mariamforam intimidadas para interrogatórios e pressionadas. Ebrahim Azizi Contou que recebeu telefones estranhos de números desconhecidos. Um corroteirista do filme foi preso.
As restrições do regime iraniano contra os artistas, no entanto, continuam. Nesta semana em que o filme estreia no Brasilchega a notícia de que o diretor foi novamente condenado a um ano de prisão, proibido por dois anos de viagem para fora do Irã e também de se associar a grupos políticos e sociais.
No entanto, como afirmou Panahí eles Cannes: “É um absurdo e até surrealista que se colocam artistas na prisão. Ao fazer isso, eles damos ideias, eles abrem um mundo novo”. Seu próprio filme, segundo ele, nasceu de inúmeras conversas com pessoas que conheceram na prisão. “Na verdade, não fomos nós que criamos o filme, foi a República Islâmica. Então, eles devem saber que, quando prenderem um artista, deverão assumir as consequências”.
Ficha técnica
Nome: Foi apenas um acidente
Nome original: Yek Tasadef Sadeh
Ano: 2025
País: França, Irã, Luxemburgo
Gênero: Drama
Duração: 102 minutos
Classificação: 14 anos
Cor da filmagem: Colorido
Direção: Jafar Panahi
Elenco: Vahid Mobasseri, Abraão Azizi, Mariam Ashfari, Hadis Pakbaten, Mohammed Ali Elyasmehr
Leia mais
