Haverá alguém que tenha escapado a burlas ou tentativas de burla nos últimos meses — ou que não saiba de casos a envolverem amigos e familiares? Há dias, no parque de estacionamento do centro comercial Alegro, em Alfragide, nos subúrbios de Lisboa, um automobilista foi acusado de embater num carro em que seguia um casal de óbvios burlões. O casal, de 50 e muitos anos, parou o seu carro e apeou-se aos berros, acusando o outro condutor, pouco mais ou menos da mesma idade, de supostamente ter colidido contra o deles ao tentar estacionar. O acusado nem conseguia articular a sua defesa, de tal forma foi apanhado de surpresa pela situação.
Quem assistiu ao episódio, e o relatou ao nosso jornal, garante que se tratou de um esquema. Os burlões insistiam, com grande lábia, que o outro lhes teria feito uma mossa no automóvel. Mas a mossa que exibiam estava na parte frontal direita, precisamente o lado oposto àquele em que o acusado tinha tentado estacionar. Quando o casal disse ao homem que ele poderia pagar uma certa quantia em dinheiro para sanar ali o diferendo, ele decidiu chamar a polícia.
Abordagens criminosas como esta estão em crescendo. A PSP descreve-as como «burlas por falsos acidentes de viação» e avisa que se trata de uma nova forma de burla, em função da «evolução dos tempos e da própria sociedade».
Segundo a PSP, «a burla por falso acidente é exercida de modo presencial, elegendo aos seus autores características psicológicas e comportamentais como manipulação, falta de empatia e persuasão, características estas que lhes permitem agir com destreza para enganar e surpreender a boa-fé da sua potencial vítima».
Os conselhos desta força de segurança são dois, essencialmente: desconfiar e não pagar nada. Além disso, a vítima deve reter o máximo de informação possível para depois poder apresentar uma queixa fundamentada junto das autoridades: características da viatura implicada e características físicas dos suspeitos — idade, altura, roupa, modo de falar, tatuagens, etc.
Em 2021, houve 86 denúncias de burla por falso acidente, dizem os registos da PSP. Em 2022, 109. Em 2023, 129. No ano passado registou-se o valor recorde de 190.
Sangria da contabancária
Nos últimos dias de julho, dois suspeitos foram detidos pela PSP em Lisboa. Um de 24 anos e outro de 20. Alegadamente dedicavam-se a esta jogada de forma sistemática desde janeiro, em colaboração com outros visados no mesmo processo. Escolhiam alvos de idade avançada e pediam-lhes quantias em dinheiro ou coagiam-nas a irem a agências bancárias para lhes transferirem elevadas somas.
Ao cabo de sete meses, antes de serem apanhados, os suspeitos apropriaram-se de cerca de 60 mil euros de pelo menos 11 idosos. Num dos casos, a vítima ficou sem 25 mil euros na conta. Até que os filhos se aperceberam da «sangria de dinheiro da conta bancária» do pai.
Este é apenas um exemplo de uma burla nova com atuação à antiga: cara a cara, na rua, com o objetivo de subtrair dinheiro vivo às vítimas. No entanto, é através da internet que se tem vindo a criar um submundo de impostores que atacam milhares ou milhões de pessoas, levando-as ao engano.
«Recuperar valores é difícil»
«Infelizmente as burlas têm vindo a aumentar, sobretudo com o crescimento das tecnologias digitais», sublinha ao Nascer do SOL a jurista Paula Eiró Pratinha, da Quor Advogados, com escritórios no Porto, em Braga e Esposende. «Todas as semanas temos reuniões em que ajudamos e aconselhamos clientes a ultrapassar novas situações. As redes sociais, o comércio online e a desmaterialização de serviços criaram oportunidades para a prática destes crimes», revela a advogada. Além do mais, «a desinformação e a falta de literacia digital, e por vezes até a falta de literacia financeira, em algumas camadas da população tornam as pessoas mais vulneráveis».
É por isso que muitas das vítimas são pessoas de meia-idade ou idosas, menos familiarizadas com o funcionamento das plataformas digitais. Mas não só. «As fraudes e burlas podem acontecer a qualquer cidadão que num momento de distração ou confiança excessiva acabe por ser enganado», nota Paula Eiró Pratinha. Quanto aos criminosos, «podem variar bastante, desde indivíduos isolados até redes organizadas, muitas vezes transnacionais».
Quem visita sites que prometem lucros extraordinários, ou adere a grupos em redes sociais para oportunidades de negócio, deve ter atenção redobrada. Porque depois de se cair num esquema destes é complicado encontrar os autores e, mais ainda, reaver o dinheiro perdido.
«Na maioria dos casos, recuperar os bens ou valores é difícil», explica Paula Eiró Pratinha. «Os autores utilizam métodos para ocultar a identidade e dissipar rapidamente os valores obtidos. Mesmo encontrando os suspeitos e sendo constituídos arguidos, mesmo o procedimento criminal sendo levado até ao fim e havendo uma condenação penal, a indemnização cível nem sempre é eficaz, sobretudo quando o autor do crime não tem património ou reside fora de Portugal».
Férias estragadas
O arrendamento de casas de férias é um bom exemplo de burla através da internet. Segundo a GNR, entre janeiro e junho deste ano foram registados 44 casos — na área de responsabilidade territorial da Guarda. No topo da lista estão os distritos de Faro, com 11 casos, e de Braga, com oito.
Por regra, os criminosos publicam na internet anúncios de arrendamento de imóveis com preços muito apelativos. Os anúncios têm fotografias verdadeiras das casas, mas as informações e o contexto são falsos.
A vítima só percebe que foi burlada algum tempo mais tarde. Tenta contactar o suposto senhorio, mas o contacto já não funciona. Ou vai procurar e a morada que lhe foi fornecida não corresponde ao imóvel do anúncio. Entretanto já transferiu para os burlões um determinado montante que estes lhe pediram a título de sinal.
A GNR deteve, no primeiro semestre, 12 pessoas suspeitas de burlas com casas de férias e identificou 33 suspeitos. A Guarda garante estar «atenta a este tipo de criminalidade» e levar a cabo «ações preventivas e de sensibilização, sobretudo junto da população mais vulnerável».
No ano passado houve 2.467 situações de burla na aquisição ou arrendamento de bens imóveis, mostram as Estatísticas da Justiça, da Direção-Geral da Política de Justiça. Estatísticas baseadas nos crimes registados pelas autoridades policiais, o que significa que há mais casos do que os denunciados, pois nem todas as pessoas apresentam queixa. Não se consegue dizer como tem sido a evolução porque até 2024 este tipo de crime não aparece discriminado nas estatísticas.
EDP enfrenta burlas
Já bem conhecido é o caso das falsas dívidas. A pessoa recebe um SMS com referências multibanco para pagar uma fatura da EDP Comercial, sob aviso de corte de energia. Em geral, as mensagens são enviadas em simultâneo para milhares de pessoas, mesmo que nem sejam clientes da eletricidade e do gás daquela comercializadora. É tudo falso. O objetivo é o de sacar valores das supostas faturas pendentes — geralmente entre 115 e 150 euros.
Por causa deste estratagema, que dura há anos, a EDP Comercial estabeleceu em janeiro uma «parceria estratégica» com a SIBS, que gere a rede multibanco em Portugal. A parceria consistiu na «criação de um canal direto entre a EDP e a SIBS, levando a que esta entidade consiga cancelar as referências fraudulentas de pagamento que foram reportadas pelos consumidores à EDP», diz-nos uma porta-voz da empresa.
A mesma fonte adianta que entre janeiro e julho a EDP recebeu cerca de 3.500 denúncias de tentativas de burla em nome da empresa, o que representa uma redução de 71% dos casos reportados, face ao mesmo período de 2024.