“Perdi minha casa, minha vizinhança, a história da minha família em Bebedouro”. O relato é da bióloga Neirevane Nunes, 48 anos, ex-moradora de um dos cinco bairros afetados pelo afundamento do solo causado pela exploração de sal-gema da Braskem.
A experiência individual narrada por Neirevane se insere em uma tragédia de dimensões coletivas: o caso, considerado o maior desastre ambiental em área urbana em curso no mundo, atingiu os bairros do Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro e parte do Farol e provocou o deslocamento forçado de cerca de 60 mil pessoas.
“Quando os bairros foram esvaziados, as comunidades perderam sua base material e simbólica. Antes, as pessoas compartilhavam a rua, a praça, a igreja, os mesmos trajetos. Hoje, cada família foi jogada para um canto diferente da cidade”, conta.
Quando se perde a casa, os amigos e a rotina, o adoecimento se torna uma consequência quase inevitável. Essa realidade é resultado da projeto de pesquisa conduzido pelo Dr. Diego Freitas Rodrigues, professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O projeto “Crônica de uma tragédia anunciada? Avaliação de impacto na saúde em comunidades em situação de desastre: o caso Braskem em Maceió, Alagoas”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal), analisa os efeitos prolongados do crime socioambiental na vida dos moradores atingidos.
Segundo o estudo apresentado no último dia 4 de dezembro, em um evento da Rede Internacional de Saúde Coletiva e Saúde Intercultural (REDSACSIC), os impactos do desastre na saúde mental são expressivos, mais de 60% das vítimas apresentam indícios de depressão acima dos parâmetros considerados normais, enquanto 53% registram níveis elevados de ansiedade e 59% convivem com estresse superior ao esperado.
Desastre provocado pela mineradora deixou marcas profundas na saúde dos moradores
O desastre provocado pela mineradora em Maceió não destruiu apenas casas e bairros inteiros, mas produziu um quadro prolongado de adoecimento físico e mental entre os moradores atingidos.
De acordo com o pesquisador, os impactos psicológicos observados não podem ser tratados como reações pontuais a uma situação de crise. “O que percebemos com a pesquisa foi um estado contínuo de sofrimento”, afirma.
Segundo Rodrigues, à medida que o desastre avançava, se tornaram frequentes os relatos de dificuldade para dormir, crises de ansiedade, medo constante, perda de concentração e desânimo até para atividades básicas do cotidiano.
O estudo destaca que esse processo ocorreu de forma simultânea à pandemia de Covid-19, o que aprofundou ainda mais o sofrimento das famílias. Na avaliação do pesquisador, o medo do contágio, somado à pressão para deixar as casas, criou um cenário de adoecimento prolongado, capaz de desorganizar rotinas, projetos de vida e vínculos comunitários.
Adoecimento crônico, falhas institucionais e ruptura comunitária
Além da saúde mental, a pesquisa identificou riscos importantes para a saúde física dos atingidos. O especialista explica que o estresse elevado e persistente está associado ao aumento da pressão arterial e ao agravamento de doenças crônicas, como diabetes e problemas cardiovasculares.
“O sofrimento emocional não fica restrito à esfera mental”, ressalta, ao relatar casos de famílias em que o deslocamento forçado foi seguido por infartos, depressão e outras doenças.
A pesquisa conduzida pelo professor também aponta falhas graves na resposta institucional ao desastre. De acordo com Rodrigues, não houve acompanhamento sistemático da saúde mental e física das populações removidas, nem transparência no acesso a dados de saúde das vítimas — o que dificulta tanto o diagnóstico adequado quanto a formulação de políticas públicas eficazes.
Ainda de acordo com o docente, do ponto de vista social, os efeitos extrapolam o indivíduo e atingem toda a comunidade. A expulsão dos moradores provocou o rompimento de redes de apoio construídas ao longo de gerações, separou famílias e intensificou a sensação de perda de pertencimento.
“Em vários relatos aparecia a ideia de não se sentir mais de lugar nenhum”, observa Rodrigues, destacando que esse processo contribui para o adoecimento coletivo. Como medida urgente, o pesquisador defende que a Braskem financie uma pesquisa independente de monitoramento psicossocial dos ex-moradores.
Além disso, o pesquisador cita a criação de um programa permanente de atenção à saúde mental e acompanhamento de doenças crônicas, envolvendo poder público, universidades e equipes multiprofissionais, com transparência e controle social.
Adoecimento coletivo
Hoje militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Neirevane relata que entre os problemas mais frequentes vividos por ex-moradores estão crises de ansiedade, insônia, dificuldade de concentração, irritabilidade e depressão, especialmente entre pessoas idosas, além de crianças e adolescentes mais isolados e com queda no rendimento escolar.
“O sofrimento mental não diminuiu com o tempo. Ao contrário, transformou-se em um desgaste crônico e, por isso, perdemos pessoas amigas. Já são 20 suicídios de pessoas que tiveram suas vidas devastadas por esse crime”, compartilha.
O representante dos empreendedores do bairro do Pinheiro, Alexandre Sampaio, também fala em dor e revolta. “A vida desmoronou por inteiro, tanto nos negócios quanto na família”, desabafa.

Segundo Sampaio, a depressão entre muitos comerciantes está ligada à perda de perspectiva de futuro. Ele explica que um comércio de bairro integra a cultura e o modo de viver de uma comunidade e, com o tempo, se torna ponto de encontro, de construção de relações, pertencimento e identidade. No caso do Pinheiro, porém, esse processo foi abruptamente interrompido.
“Tudo isso se perdeu em dois anos, e as autoridades desprezaram esses fatos com uma frieza assustadora. Por isso, muitos comerciantes foram tomados por sentimentos de fracasso, impotência e incapacidade de recomeçar, como se a responsabilidade fosse deles, e não da Braskem. É brutal o impacto na saúde emocional”, afirma.
Alexandre diz conhecer casos de depressão, doenças psicossomáticas e suicídio associados ao crime da mineradora. “Ser expulso do lugar que você construiu sem sequer uma indenização digna, que contemple todos os danos morais e materiais, é profundamente perturbador, adoecedor, ameaçador e destruidor”, relata.
Os relatos se aproximam dos de Neirevane. Para a bióloga, os dados do estudo apenas confirmam o que ela já percebia no cotidiano das pessoas atingidas: “o crime não destruiu apenas casas, mas também a saúde mental e emocional de um território inteiro”.
A bióloga acrescenta que o adoecimento é ainda mais intenso entre a população que permanece nas bordas do mapa, como Flexais, Quebradas, Marquês de Abrantes, Bom Parto e Vila Saem. Segundo Neirevane, essas pessoas seguem expostas a um “ambiente insalubre, inseguro e indigno” em que se transformaram os bairros afetados.
O que cobram os moradores
Lideranças dos movimentos que representam as vítimas da mineração, como Neirevane e Alexandre, afirmam que o acesso ao atendimento psicológico é insuficiente.
Eles denunciam a inexistência de uma política pública específica para os atingidos, substituída por ações pontuais e fragmentadas, que falham ao tratar um problema coletivo e territorial de forma individual.
“A verdade é que a saúde mental dos atingidos sempre foi negligenciada pelo poder público e pela Braskem”, comenta Neirevane. Além disso, as lideranças apontam que o que existe hoje não dá conta da complexidade e da escala do sofrimento.
Entre as reivindicações estão equipes multidisciplinares permanentes, acompanhamento de longo prazo, profissionais com formação em trauma coletivo e deslocamento forçado, suporte específico para crianças, idosos e mulheres, além de acolhimento para lideranças comunitárias, que carregam dupla carga emocional.
“Falta reconhecer que as indenizações não consideram os danos emocionais e simbólicos; que as políticas de cuidado precisam ser permanentes; e que a destruição das comunidades é um trauma social, não um ‘evento geológico’, como a mineradora sustenta em sua narrativa”, afirma a bióloga.

As indenizações também estão no centro das cobranças. “O problema estrutural permaneceu até hoje: sem indenização adequada e justa, nenhum empreendedor teve reparação integral dos danos sofridos. Muitos empobreceram, quebraram ou adoeceram em função do crime da empresa”, diz Alexandre.
Sampaio relata que, em novembro deste ano, a Associação dos Empreendedores e Vítimas da Mineração, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado de Alagoas, ingressou com uma ação civil pública para o reconhecimento das perdas materiais e morais dos empreendedores das bordas do mapa.
“Traduzindo em números, apenas para empreendedores, a Braskem deve aproximadamente entre R$ 4 e R$ 5 bilhões. Sem essa reparação, não haverá justiça”, afirma.
Os movimentos defendem ainda a realização de um diagnóstico multidisciplinar em caráter censitário, que inclua todas as vítimas — empreendedores, moradores, estudantes, trabalhadores, grupos culturais e religiosos — com rigor científico, para a construção de uma matriz de danos capaz de dimensionar a real extensão da tragédia.
“Cobrei isso recentemente em uma reunião do Comitê de Danos Extrapatrimoniais, órgão formado por representantes da sociedade civil, mas tutelado pelo MPF, que poderia realizar essa matriz, mas se nega a assumir essa responsabilidade, contribuindo para a impunidade da mineradora”, critica Alexandre.
Outros lados
A reportagem procurou os órgãos competentes e a Braskem para questionar as cobranças das vítimas sobre o acesso ao atendimento psicológico.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas (Sesau) informou que, desde março de 2024, mantém o Posto de Atendimento Médico dos Flexais, em Bebedouro, para atender moradores impactados pelo afundamento do solo.
No local, são oferecidos atendimentos médicos, além de Psicologia e Psiquiatria, por demanda espontânea, de segunda a sexta-feira, das 8h às 16h. Desde a implantação, já foram realizados 12.845 atendimentos, sendo 2.287 em saúde mental. Para ter acesso, é necessário comprovar residência em área afetada e apresentar o Cartão SUS.
A Defesa Civil de Maceió informou que a prefeitura oferece atendimento psicológico por demanda espontânea às vítimas, por meio do Fundo de Amparo ao Morador (FAM), além de atendimentos nas Unidades Básicas de Saúde, no programa Saúde da Gente e na UBS do Flexal.
Já a Braskem afirmou que atua desde 2019 para mitigar os efeitos da subsidência do solo e que, desde 2020, disponibiliza apoio psicológico gratuito a famílias incluídas no Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação (PCF) e à comunidade dos Flexais.
Segundo a empresa, já foram realizados mais de 48 mil atendimentos, mais de 4 mil deles nos Flexais, com sessões individuais e rodas de diálogo conduzidas por empresas independentes e profissionais especializados. A quantidade de sessões e o tempo de acompanhamento, afirma a Braskem, são definidos entre o morador e o psicólogo, de acordo com a necessidade.
A mineradora ainda reforça que mais informações podem ser obtidas pelo telefone 0800-006-3029, com ligação gratuita, inclusive de celular.
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*Estagiária sob supervisão da editoria
Foto de capa: Arthur Celso/Mídia Ninja
