Assim como os filmes de esporte, o subgênero dos filmes de desastre, popularizado na década de 70, costuma seguir regras quase imutáveis, com um grupo de personagens sendo apresentado, enquanto as circunstâncias para a catástrofe da vez acontecer são trabalhadas em um segundo plano simultâneo, algo que é seguido pela luta pela vida e a morte de diversos personagens ao longo da jornada. Não tem escapatória e, mesmo nos exemplares mais fracos da categoria, a diversão costuma ser garantida. Com o passar das décadas, porém, esse subgênero foi muito mal tratado por Hollywood, que passou a produzir gigantescos espetáculos de computação gráfica com super-heróis – e não pessoas normais – no protagonismo, o que acabou pasteurizando ainda mais os filmes do tipo. Não que não existam bons exemplos nas últimas décadas, claro, mas eles são poucos e esparsos. Paul Greengrass, que tem uma filmografia cambaleante, mas com excelentes filmes totalmente de ficção e também baseados em eventos reais como A Supremacia Bourne, O Ultimato Bourne, Capitão Phillips e 22 de Julho, nos oferece um filme de desastre clássico que, por ser focado essencialmente em apenas dois personagens, consegue desvencilhar-se de muitas das armadilhas plantadas pela sana por exageros atrás de exageros da indústria cinematográfica.

O Ônibus Perdido é a versão ficcional da história real de um motorista de ônibus e de uma professora que lutam para salvar 22 crianças de uma escola que precisam ser evacuada a todo custo durante o incêndio florestal de 2018 no norte da Califórnia, um dos mais destruidores e mortais do estado. Como de praxe, somos apresentados a Kevin McKay (Matthew McConaughey), motorista de ônibus escolar que vive um vida repleta de culpa por achar que falhou como filho e que está falhando como pai, sobretudo depois do divórcio de sua esposa, um homem preso em um labirinto sem saída que lhe deixa desesperado e sem esperanças. Em paralelo e sem perder tempo, o fogo, causado por fagulhas de uma torre de transmissão de eletricidade, começa e é alimentado pela vegetação seca que não vê chuva há mais de 200 dias e espalhado por uma inclemente ventania, com Greengrass usando excelentes planos de acompanhamento próximos ao chão da floresta que fazem do espectador o próprio fogo como Saimi Raimi famosamente fez em A Morte do Demônio, transformando espectador na própria entidade invocada. Enquanto Kevin luta consigo mesmo, o incêndio brutal começa a engolfar o vale e a ir na direção de Paradise, a maior cidade das imediações, ou seja é o Inferno chegando ao Paraíso, o que mais do que justifica a inspiração em Raimi.

O roteiro, escrito por Greegrass ao lado de Brad Ingelsby (responsável pelo irretocável texto de Mare of Easttown) com base não só nos fatos, como também no livro de 2021 da jornalista Lizzie Johnson, que conta toda a história desse incêndio, não só a de McKay, opta por inicialmente focar apenas no motorista e no fogo, o que acaba fazendo com que a professora Mary Ludwig (America Ferrera), que acompanha as crianças, só apareça no longa com quase 40 minutos já passados, quando ela está prestes a entrar no ônibus, algo sempre arriscado, por ser uma personagem sem contexto e peso, mas que é compensado pela ótima atuação da atriz e de sua química nervosa com um sempre intenso e dedicado McConaughey. O que muito sinceramente não me convenceu de maneira alguma foi o pulo lógico de Kevin que o leva à decisão de resgatar as crianças quando sua chefe manda uma mensagem de rádio a todos os motoristas indagando se tem alguém na região com o ônibus vazio. Logo antes do pedido, Kevin estava retornando para casa, contra as ordens de sua chefe, para levar um remédio para seu filho adolescente na casa da avó, trajeto que levaria, segundo ele mesmo menciona, algo como 20 minutos, mas ele não demora nada a mudar de ideia, decidindo largar tanto seu filho quanto sua própria mãe inválida no caminho do fogo, sem sequer conseguir falar com eles ao telefone para saber se está tudo bem, algo que vemos Mary fazer minutos antes na escola, narrativamente resolvendo a questão de seu filho com a ajuda da irmã. Apesar de todo o tempo dedicado a Kevin McKay antes do fogo, tenho para mim que o roteiro falhou em justificar essa escolha de supetão de Kevin sem que ele sequer cogite em dirigir até onde sua família está.

Seja como for, uma vez absorvida essa decisão estranha, o filme caminha exemplarmente, com Greengrass, então, trabalhando em duas frentes, Kevin, Mary e as crianças no ônibus tentando sair da zona de perigo e a coordenação da luta contra o fogo pelo chefe dos bombeiros. Essa é outra decisão ousada do roteiro, devo dizer, pois as duas histórias andam em paralelo e nunca efetivamente se cruzam, o que cinematograficamente reprovável, por assim dizer, mas que, em última análise, funciona para fazer do tempo dedicado às equipes de resgate um pano de fundo que dá contexto para a força devastadora do fogo e serve como homenagem aos homens e mulheres que nunca hesitam em arriscar suas vidas para salvar as pessoas das mais variadas tragédias. E, diria mais, o diretor consegue equilibrar muito bem o tempo entre os dois núcleos, criando uma cadência e um ritmo que funcionam muito bem para construir tensão e urgência, com o lado da coordenação servindo como uma forma de explicar o que vemos o ônibus passar.

Com computação gráfica convincente que chega a ser verdadeiramente assustadora tamanha a violência e inclemência do fogo, além de atuações humanas e pé no chão da dupla principal, Paul Greengrass faz um filme desastre raro que consegue ao mesmo tempo espantar pelo espetáculo visual e pelas performances, como assombrar pelo realismo e autenticidade. O Ônibus Perdido pode até ser um filme de desastre, mas talvez seu gênero mais apropriado seja mesmo o horror, sem que fique perdida a mensagem de que a humanidade parece não aprender que brincar com a natureza pode ter consequências inimagináveis.

O Ônibus Perdido (The Lost Bus – EUA, 03 de outubro de 2025)
Direção: Paul Greengrass
Roteiro: Brad Ingelsby, Paul Greengrass (baseado em eventos reais e em livro de Lizzie Johnson)
Elenco: Matthew McConaughey, America Ferrera, Yul Vazquez, Ashlie Atkinson, Levi McConaughey, Kay McCabe McConaughey, Kate Wharton, Danny McCarthy, Spencer Watson, Nathan Gariety, Gary Kraus
Duração: 130 min.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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