Crítica | Foi Apenas Um AcidenteCrítica | Foi Apenas Um Acidente

O cinema de Jafar Panahi é feito sob vigilância constante. Ele já foi preso, libertado e teve novamente a prisão decretada pelo governo do Irã para fazer propaganda contra o Estado e mais algumas outras acusações de cunho político e/ou ideológico que esperam de nações que perseguem seus artistas. É por isso que as condições de produção do longo Foi apenas um acidente não espanta. Não foi a primeira vez e, pelo visto, não a última que o cineasta precisou filmar escondido, com equipe prejudicial e danos jurídicos (impulsionados por um Estado autoritário) após o lançamento de um novo projeto. Especialmente um filme como este, que fala diretamente sobre ações de indivíduos que servem a líderes questionáveis ​​ou à intocável instituição maior (o Estado), e que, diante desse “monstruoso disforme e impessoal“, só sabem fazer uma coisa: seguir cegamente às ordens recebidas. O discurso parece familiar, não? Pois bem, é justamente essa familiaridade que costura com intensidade o enredo da fita, escrito pelo próprio Panahi.

Muito se fala dos algozes, dos horrores que cometeram e das motivações para isso, e é justamente por haver muita coisa sobre esse lado que o diretor trouxe para o centro de sua tese o arquétipo do sobrevivente. Os excelentes atores e não-atores aqui escalados interpretam faces distintas de quem passou por situações de extrema violência, mas na hora de exercer a vingança ou a restrição o inimigo em sua fragilidade máxima, não têm coragem ou idade de maneira bem diferente da que se esperava. Mesmo que o tempo social tenha falsamente superado a mancha do passado (e mais adiante explícito o porquê desse “falsamente“), a convicção, os sentimentos e a memória das vítimas permanecem em carne viva. Cada gesto, cada ruído — e vale aqui enfatizar a soberba exploração dos recursos sonoros como intensificadores de tensão ou mesmo de mola narrativa no filme –, cada cheiro, cada tom de voz são gatilhos para as vítimas que, mesmo tentando seguir em frente, carregam o trauma como um fardo e não sabem exatamente o que fazer para realmente deixá-lo pelo caminho.

A direção cria um banquete de gestos mínimos imbuídos de implicações éticas e somadas às histórias pessoais de pessoas que, por sua vez, são uma pequena mostra de todos os que foram torturados, espancados, assediados ou mortos pelos “homens comuns” institucionais. O roteiro é repleto de frases precisas, polidas com cuidado extremo, fazendo com que só o essencial seja aqui e sirva como uma porrada no público a cada diálogo. Panahi sempre foi um roteirista competente, especialmente quando retrata personalidades opostas, todas com uma naturalidade e um nível tão grande de convencimento que o espectador se esquece de que está vendo uma ficção e que o filme passou esvoaçando, de tão magnético que foi o processo. É aí que vemos o magnífico falsamente (eu disse que explicaria!) a questão opressiva e a vigilância do Estado aparentemente resolvida. Toda a cidade vibra uma extensão do trauma dos personagens, pois está embebida em corrupção, cobrando propina para não denunciar coisas simples do dia a dia que, sob um olhar específico, sob uma determinada maneira de acusação, poderia trazer consequências muito ruínas para as pessoas.

As marcas corporais e psicológicas dos personagens são catalisadas pelo pequeno acidente que acontece logo nos primeiros minutos do filme, desenvolvendo um turbilhão de posturas e narrativas. Nem todas as vítimas concordam sobre como agir diante de um possível algoz. A isto, soma-se a culpa, a dúvida e o próprio caráter e personalidade dos sobreviventes, que geram frases como “eu não imaginava que você seria capaz de fazer uma coisa assim“ou”se você fosse mesmo um assassino, você já me teria matado“. O diretor não ignora a imprevisibilidade do comportamento humano, mas ele joga em um terreno confortável, lidando com aquilo que é esperado sem tirar o peso e as reflexões de cada atitude. É por isso que vemos a culpa também servir de combustível para a transformação de cada um, assim como dos fantasmas psicológicos, fazendo com que certos ruídos familiares demais para serem ignorados. Ou será que é tudo coisa da cabeça da vítima, que depois de tantos horrores, não consegue enfrentar a realidade ou se lembrar detalhadamente de detalhes tão banais?

O acidente do título relata um grupo de pessoas e cria uma rede de conexões traumáticas que busca pelo menos entender quem esteve por trás dos piores momentos de suas vidas. Não existe, na verdade, um plano geral. Existe uma vontade de saber. Quer dizer. Porque nenhuma dessas pessoas consegue lidar com aquilo que não pode remediar. Eles não sabem o que fazer com aquilo que não pode mais ser desfeito. Porque “o que foi feito“está em seus corpos, em suas memórias, em seus sentimentos. O quanto isso não está contaminado pelo ódio ou pelas nuvens do tempo, nós não sabemos. Mas temos a certeza de que, para transformar pessoas comuns em cruzeiros aterrorizadores que vão usar de todas as zonas cinzentas para explicar seus atos, basta um pequeno acidente. E toda a cadeia de eventos que daí surge, vira trauma e história.

Foi Apenas Um Acidente (یک تصادف ساده / Yek tasadef sadeh / It Was Just an Accident) — Irã, França, Luxemburgo, EUA
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
Elenco: Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten, Majid Panahi, Mohamad Ali Elyasmehr, Delmaz Najafi, Afssaneh Najmabadi, George Hashemzadeh
Duração: 103 minutos.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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