Na atualidade, pouquíssimos documentaristas brasileiros possuem uma visão tão afiada quanto Emílio Domingos. Além de cineasta, ele é cientista social, o que dá a seus filmes perspectivas muito especiais sobre ícones culturais brasileiros marginalizados, como o passinho, os barbeiros das periferias, os bailes e agora o pagode. Em 2024, ele já havia lançado o espetacular Black Rio! Black Power!, que falou sobre as origens dos bailes da Black Music no Rio de Janeiro, fazendo um trabalho de pesquisa hercúleo, já que as imagens da década de 70 eram raríssimas, e as poucas que tinham resistido ao tempo eram de reportagens que tratavam a música e seus adeptos como vagabundagem.
Agora, seguindo pelo ramo musical, Emílio lança Anos 90: A Explosão do Pagode, um filme produzido em parceria com a Globo, que viaja pelas origens do pagode até chegar à década de 1990, quando São Paulo entra na cena musical com nomes que começaram marginalizados, mas hoje são altamente requisitados em festas, celebrações particulares, shows e festivais. E por ter essa parceria com a Globo, o filme ganha um power-up na produção, que passa a ter maior investimento, mas sua maior conquista é contar com um acervo gigantesco de imagens, vídeos e entrevistas de ícones. Se Emílio conseguiu tirar leite de pedra em Black Rio! Black Power!, em Anos 90, ele fica solto no seu “parque de diversões da pesquisa”, tendo acesso a esse amplo acervo para resgatar falas de ícones eternos do pagode.
 
A abertura do filme conta a origem desse estilo musical nos braços da Baía de Guanabara. Essa parte é tão bem-produzida que poderia ser lançada tranquilamente como um curta que faria sucesso do mesmo jeito. Estabelecidas as raízes do pagode, o filme corre salta para a década de 1990, quando o mercado fonográfico paulista percebe que a juventude local está interessada nesse gênero musical, mas os principais produtores não têm cacife para trazer os astros cariocas, que também não tinham agendas disponíveis para tocar na terra da garoa. Inclusive, é interessante como a narrativa desse documentário é trabalhada para desconstruir um antigo ditado carioca sobre como São Paulo representa a morte do ritmo musical.
Diante dessa necessidade do público em curtir um pagodinho romântico, a juventude e o mercado paulista beberam da fonte carioca e passaram a montar seus próprios conjuntos, como Exaltasamba, Só Pra Contrariar e Raça Negra, dando início a um movimento que popularizaria o pagode não apenas em São Paulo, mas em todo o Brasil. Já que as principais emissoras do país tinham estúdios na capital paulista, fazendo com que a presença dos pagodeiros passasse a ser frequente nos programas de auditório dos finais de semana. Essa “guerra pela audiência”, inclusive, é abordada de forma sensacional no longa.
Outro ponto fantástico dessa parceria com a Globo foi a possibilidade de contar com grandes nomes fortes da cena para fazerem pequenos shows e darem entrevistas longas. Dessa forma, a narrativa é contada muito pela ótica de ícones como Netinho de Paula, Péricles, Chrigor, Belo e Thiaguinho, mesclando seus relatos com músicas cantadas por eles em um estúdio próprio montado para a produção. Isso faz com que a trilha musical do documentário seja uma verdadeira viagem no tempo. Sem contar que os músicos cantam versões de canções de outros artistas, criando momentos completamente inesperados.

O ponto “negativo”, por assim dizer, é que o documentário acaba se estendendo para os anos 2020, como forma de mostrar até onde o legado dessas lendas noventistas chegou. Há momentos muito bons, como os relatos de Ludmilla, que faz questão de homenagear e honrar os pagodeiros em suas turnês, assim como os relatos de Glória Groove, que fala sobre os desafios que enfrentou, enquanto pessoa LGBT, para crescer e se consolidar no pagode nos dias de hoje.
Enquadro essa parte como ponto “negativo” porque é uma sequência que acaba sobrando um pouco no tema. É que o assunto dos anos 90/ 2000 é tão interessante que você fica ansioso por essa parte. As décadas de 2010 e 2020 falam da ascensão e do momento “pop” do Pagode. É algo que poderia render um documentário por si só, mas acaba estendendo um pouco a mais na temática noventista, e cansa um pouco. De qualquer forma, é uma sequência muito bem-produzida, que poderia ser transformada em uma segunda parte do documentário, até para falar mais sobre as misturas dos gêneros, por exemplo.
 
Conseguindo extrair a essência da década de 1990 com maestria, Anos 90: A Explosão do Pagode é uma verdadeira viagem pela nostalgia da música que dialogou – e dialoga – com os corações de milhões de apaixonados pelo Brasil. Contando com depoimentos e passagens cantadas sensacionais, é um documentário muito gostoso de se assistir. Mas prepare o streaming de música, porque você certamente sairá da sessão querendo ouvir a playlist completa.
 
 