A Grande Inundação, produção sul-coreana distribuída pelo Netflix, é um filme “dois em um”, com sua primeira parte que vai basicamente até a metade de sua duração, sendo um filme desastre que é a materialização do que está no título, sem mais, nem menos, mas em uma ambientação controlada e focada em apenas três personagens. A segunda parte, que não descreverei aqui para manter a crítica completamente sem spoilers, parte de uma reviravolta narrativa que subverte expectativas e realmente transforma o longa em outra coisa completamente diferente. É como Psicose ou sua homenagem vampiresca Um Drinque no Inferno, mas com problemas grandes especialmente na segunda parte que impedem que a ambiciosa obra dirigida e corroteirizada por Kim Byung-woo sequer mereça estar na mesma frase do que as que usei como exemplos, até mesmo da trasheira simpática de Robert Rodriguez.

Sem perder tempo, A Grande Inundação já começa com a inundação em franco andamento, com a cientista de inteligência artificial Gu An-na (Kim Da-mi), recém enviuvada, acordando, recebendo uma ligação de que ela será resgatada em breve por uma voz que desconhece e fugindo de seu apartamento no terceiro andar com seu filho pequeno diabético Ja-in (Kwon Eun-seong) em direção ao teto do gigantesco conjunto habitacional onde vive. Enquanto a água não para de subir, ela se encontra com seu suposto salvador, Son Hee-jo (Park Hae-soo), que explica que um asteroide atingira o Polo Norte há três horas e que, por ela ser a única esperança de sobrevivência da raça humana, ela será levada de helicóptero para uma estação espacial secreta. Essas informações são jogadas no colo do espectador sem preocupação alguma com a construção de contexto, mas com a promessa clara de que tudo será eventualmente explicado, o que de certa forma funciona para atiçar a curiosidade de um lado e, de outro, para não desviar o foco da história de sobrevivência que vai sendo contada andar por andar.

A correria é eficiente, as situações de perigo para mãe, filho e resgatador são variadas e o CGI que cria a água digital é bom o suficiente para não distrair. E, claro, o salpico de mistérios aqui e ali vai montando um quebra-cabeças inicialmente fora de ordem, mas que existe para não fazer da reviravolta do meio de minutagem algo aleatório e completamente imprevisível, o que seria péssimo. O roteiro não mente: há mais do que apenas uma inundação catastrófica, mas o que exatamente só fica totalmente claro no momento de inflexão, ainda que os mais atentos talvez percebam antes pelas pistas deixadas no meio do caminho. No entanto, o problema está justamente quando, virada a chave, o filme toma outro caminho, pois esse novo caminho que, visto de maneira isolada, é interessante, acaba sendo trabalhado de maneira exageradamente frenética, além de ser repleto de conveniências e soluções fáceis que acabam minando tudo o que foi construído anteriormente, mesmo que a conexão mãe e filho, talvez o verdadeiro coração da fita, permaneça razoavelmente intacto.

É o afã de fazer algo diferente que acaba inundando o longa de situações extraídas de diversas outras obras conhecidas da cultura pop – não as cito para não dar pistas – em velocidade maior do que as gigantescas ondas que assolam o prédio onde An-na e Ja-in vivem, com o roteiro não conseguindo processar adequadamente os eventos mais importantes. Não é de forma alguma um filme complexo, mas ele por vezes é confuso em razão da decupagem e da montagem, e, por outras vezes, dependente demais de “momentos de explicação” que param a narrativa e, no processo, abruptamente tiram o espectador do necessário mergulho na trama, em mais um exemplo de obra que subestima o espectador, achando-se mais hermética do que de fato é (e ela não é absolutamente nada hermética). O problema não está na mudança de direção do filme. Isso é, pelo menos para mim, muito bem-vindo. A questão é como essa alteração e efetivada e é nesse aspecto que reside o problema. Há o inegável mérito do roteiro de misturar tropos de filmes conhecidos em um conjunto que poderia resultar em algo muito bom se o momento da grande reviravolta não fosse confundido pelo diretor como licença para ligar o motor de dobra e acelerar tudo como se não houvesse o amanhã, fazendo com que a fita perca seu foco e seu fôlego.

Mesmo com seus evidentes problemas, A Grande Inundação ainda consegue ser uma diversão descompromissada bem feita que poderá agradar quem apreciar filmes-desastre velozes e furiosos de fim do mundo que oferecem algo mais do que apenas a estrutura clássica. Em seu “dois em um” em que o primeiro filme é bem melhor do que o segundo, Kim Byung-woo poderia ter tido mais calma e talvez menos empolgação no desenvolvimento de seu momento eureca, mas o que ele acabou levando às telinhas funciona daquele jeito atabalhoado de ser. É só o espectador tampar a respiração e mergulhar de verdade na proposta sem pensar muito no que está fazendo.

A Grande Inundação (대홍수 / The Great Flood – Coréia do Sul, 19 de dezembro de 2025)
Direção: Kim Byung-woo
Roteiro: Kim Byung-woo, Han Ji-su
Elenco: Kim Da-mi, Park Hae-soo, Kwon Eun-seong, Kang Bin, Jeon Yu-na, Eun Su, Jeon Hye-jin, Park Byung-eun, Lee Hak-joo
Duração: 108 min.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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