Opinião

No cenário jurídico-eleitoral brasileiro, a busca pela probidade e pela lisura dos pleitos impõe uma análise permanente dos meios de prova admitidos no processo e dos critérios utilizados para sua valoração. Dentro desse contexto, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral tem se consolidado no sentido de que, uma vez reconhecida a ilicitude de uma gravação ambiental clandestina, todas as provas dela derivadas — inclusive o depoimento da testemunha que realizou a captação — devem igualmente ser declaradas ilícitas, com fundamento na teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree).

Antonio Cruz/Agência Brasil

A origem dessa orientação remonta a precedentes como o Recurso Ordinário nº 190461 (2012), no qual se firmou a compreensão de que admitir o depoimento do agente responsável pela gravação seria “permitir que a prova ilícita, expulsa pela porta, voltasse a entrar pela janela“. Tal lógica foi reafirmada em julgados posteriores, como o AgR-REspe nº 661-19/BA (2015) e o AgR-REspe nº 973-39/SP (2018), nos quais a Corte reconheceu que a contaminação probatória alcança também o testemunho da própria pessoa que produziu a prova ilícita. O mesmo raciocínio foi reiterado nos AgR-REspe nº 404-83/RJ (2021), REspEl nº 0600707-22/RS (2023) e, mais recentemente, no Agravo em REspEl nº 0600582-51 (2025), reafirmando-se de modo categórico a exclusão do depoimento do agente que realizou a gravação clandestina.

Todavia, essa construção jurisprudencial não está imune a críticas. A aplicação automática da teoria dos frutos da árvore envenenada ao depoimento da testemunha que participou diretamente dos fatos — e, portanto, detém memória autônoma sobre eles — desconsidera a natureza própria das fontes probatórias e contraria a sistemática do artigo 157, § 1º, do Código de Processo Penal, cuja aplicação analógica ao processo eleitoral é amplamente reconhecida. O dispositivo legal impõe a demonstração do nexo causal entre a prova ilícita e a prova dela derivada, afastando a contaminação quando existente fonte independente.

A análise crítica desse posicionamento jurisprudencial é de especial relevância, pois as decisões do TSE não apenas orientam, mas efetivamente moldam a prática probatória no sistema eleitoral brasileiro, com impacto direto sobre a capacidade institucional de apurar condutas ilícitas e assegurar a higidez do processo democrático, de modo que se faz necessária uma reflexão profunda, com vistas à aplicação técnica e racional da teoria dos frutos da árvore envenenada no âmbito da Justiça Eleitoral.

Proposta de adequação jurisprudencial às balizas da teoria dos frutos da árvore envenenada

A consolidação jurisprudencial do TSE, ao afirmar de modo categórico a ilicitude, por derivação, do depoimento prestado pela testemunha que realizou gravação ambiental clandestina, incorre em manifesta desarmonia com os limites fixados pelo artigo 157, § 1º, do Código de Processo Penal, aplicável ao processo eleitoral por analogia. O dispositivo legal determina que somente serão inadmissíveis as provas derivadas quando houver nexo de causalidade entre a prova ilícita e aquela que dela decorre, ressalvando expressamente a hipótese de fonte independente.

Nada obstante, o que a corte eleitoral tem feito é converter uma regra de exclusão de aplicação condicionada em uma presunção absoluta de contaminação, ignorando a autonomia da memória testemunhal como fonte probatória legítima.

Spacca

É incorreto sustentar que o depoimento de uma testemunha presencial deriva logicamente da gravação que ela própria realizou. Isso porquanto a capacidade de narrar os fatos decorre de sua condição de interlocutora direta ou de observadora imediata dos acontecimentos, e não do registro sonoro ou visual posteriormente declarado ilícito. Mesmo que a gravação jamais tivesse existido, a testemunha continuaria apta — e isso é o que se presume — a relatar em juízo os fatos que vivenciou. Nessa medida, a memória individual constitui uma fonte independente de prova, preservada da contaminação e plenamente apta a ser valorada pelo julgador.

Com efeito, ao impor a exclusão indiscriminada desse meio probatório, desconsidera-se esse aspecto fundamental, comprometendo a racionalidade do sistema probatório. A memória humana, nesses casos, não é uma reprodução da gravação ilícita, mas expressão autônoma de uma experiência direta.

Mas existem hipóteses em que o depoimento testemunhal do agente gravador deve ser reconhecido ilícito por derivação, o que ocorre quando a testemunha não presenciou os fatos e apenas tomou conhecimento deles a partir da gravação clandestina. Nessas situações, sua narrativa em juízo carece de autonomia e depende integralmente do conteúdo ilícito, havendo nexo causal inequívoco.

Foi justamente isso que ocorreu no contexto fático que deu origem ao Recurso Eleitoral nº 100-60.2017.6.09.0143, julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Goiás (TRE-GO), em que a gravação fora realizada por um terceiro que não participou do diálogo, e as testemunhas ouvidas em juízo apenas tiveram ciência dos fatos porque assistiram ou ouviram o conteúdo captado clandestinamente. Não se tratava, portanto, de pessoas que presenciaram ou vivenciaram diretamente os acontecimentos, mas de meros receptores da informação ilícita. Diante desse quadro, foi reconhecida corretamente a ilicitude por derivação dos depoimentos, pois a fonte de conhecimento das testemunhas estava integralmente vinculada ao conteúdo da gravação.

Tal distinção é decisiva. A exclusão automática é inadequada quando dirigida contra a testemunha que vivenciou diretamente os fatos, pois sua memória constitui fonte independente e goza de presunção de autonomia. Já a exclusão é adequada quando a testemunha não participou dos acontecimentos e somente obteve conhecimento deles em razão da gravação ilícita. O desafio que se impõe à jurisprudência eleitoral consiste em reconhecer essa distinção dogmática, evitando que a exclusionary rule se converta em barreira geral à apuração de ilícitos eleitorais. Somente assim será possível harmonizar as garantias constitucionais contra provas ilícitas com o princípio da verdade processual, preservando os contornos legais e teóricos da teoria dos frutos da árvore envenenada.

Reconhecimento do equívoco jurisprudencial em recente acórdão do TRE-RN

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte, ao julgar o Recurso Eleitoral nº 0600560-62.2024.6.20.0008, reconheceu que a tese segundo a qual a memória da testemunha constitui fonte autônoma de prova encontra amparo técnico na doutrina especializada e no artigo 157, § 1º, do CPP, mas ponderou que a aplicação prática desse entendimento esbarra na orientação consolidada pela TSE.

Na ocasião, foi consignado no acórdão que “com a ressalva do meu entendimento pessoal, deixo de acolher o argumento recursal, na linha de que, mesmo se a gravação não existisse, ‘a testemunha teria os mesmos meios fáticos e jurídicos para descrever os acontecimentos que presenciou, visto que sua memória é autônoma em relação a qualquer meio de prova externo’, posto contrariar a jurisprudência sedimentada no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral” (…)“penso que a exceção à ilicitude por derivação, com base na obtenção da prova por fonte independente, poderia incidir na presente situação, para o fim de se considerar como lícitas (e válidas) as declarações prestadas, tanto em sede judicial, como na esfera policial (boletim de ocorrência). Contudo, esse não é o entendimento que predomina no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, que reconhece a ilicitude por derivação da oitiva em juízo da pessoa responsável por realizar a gravação clandestina” (TRE-RN – REl: 0600560-62.2024.6.20.0008, Riachuelo/RN, Rel. Hallison Rego Bezerra, j. 23/09/2025, DJE-180, p. 26/09/2025).

Em outras palavras, a licitude da prova foi afastada não por decorrer de sua natureza jurídica, mas exclusivamente por deferência à hierarquia entre as instâncias judiciais, diante do entendimento consolidado pelo TSE.

Conclusão

A aplicação indiscriminada da teoria dos frutos da árvore envenenada pelo TSE, especialmente quanto ao depoimento da testemunha que realizou a gravação clandestina, representa um descompasso entre a jurisprudência eleitoral, a legislação processual e a dogmática probatória. A lógica da contaminação, concebida para impedir a legitimação indireta de provas ilícitas, não pode ser convertida em automatismo que ignora as exceções expressamente previstas no artigo 157, § 1º, do Código de Processo Penal, como a ausência de nexo causal e a existência de fonte independente.

A memória da testemunha que presenciou diretamente os fatos possui presunção de autonomia, pois não decorre da gravação ilícita, mas da vivência imediata da conduta. A exclusão automática de seu depoimento carece de base técnica e compromete a própria função jurisdicional da Justiça Eleitoral, tornando ainda mais difícil a apuração de ilícitos, especialmente nos casos de abuso de poder e captação ilícita de sufrágio, cuja prova costuma ser complexa e sensível. O processo eleitoral, por sua natureza, deve ser guiado pelo princípio da verdade, sob pena de frustrar a proteção constitucional da legitimidade do pleito.

Por outro lado, a exclusão é adequada quando a testemunha não presenciou os fatos e apenas tomou ciência deles por meio da gravação clandestina, hipótese em que há dependência causal inequívoca. A correta distinção entre testemunha direta e indireta é, portanto, indispensável para um equilíbrio entre garantias individuais e efetividade jurisdicional.

Ao contrário do que assentado pelo ministro Henrique Neves no Recurso Ordinário nº 190461, não se trata de permitir que a prova ilícita, expulsa pela porta, volte a entrar pela janela, mas de evitar que exceções à exclusionary rule, já consolidadas, sejam “varridas para debaixo do tapete“, convertendo uma regra de exclusão pontual em barreira absoluta à apuração da verdade processual. Trata-se, em suma, de aplicar a teoria dos frutos da árvore envenenada de forma técnica, preservando ao mesmo tempo direitos fundamentais e a higidez do processo eleitoral.fsu

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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