O Rio Grande do Sul registra, tradicionalmente, uma média anual de 500 casos de leptospirose. Endêmica de regiões rurais do Estado, a doença chega a ser chamada de “febre dos arrozais” devido à alta prevalência entre agricultores que cultivam arroz.
De acordo com especialistas, os arrozais atraem roedores devido à disponibilidade de alimento e água, aumentando o risco de contaminação da água e do solo com a bactéria causadora da doença. Mas o que se observou em 2024 foi um cenário de contaminação diferente.
Após a enchente histórica que atingiu o Estado no ano passado, o número de casos superou 1 mil registros, conforme levantamento exclusivo do Estadão. O total, porém, pode ser ainda maior, considerando a subnotificação.
“(O número) surpreende, mas de certa forma era esperado. É bem sabido que sempre que há alagamentos, enchentes, acumula muita água, proliferam roedores e os casos de leptospirose aumentam”, comenta Alessandro Pasqualotto, presidente da Sociedade Gaúcha de Infectologia e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Mais frequentes e intensos devido às mudanças climáticas, esses desastres estão desafiando paradigmas e podem fazer a leptospirose alcançar novos patamares — estudos estimam que no mundo, por ano, são registrados 1 milhão de casos e 60 mil mortes. Para nos prepararmos, os pesquisadores listam medidas essenciais.
Qual a relação entre leptospirose e enchentes?
A transmissão de humano para humano da leptospirose é extremamente rara. Ela é considerada uma zoonose, ou seja, uma doença naturalmente transmissível entre animais vertebrados e seres humanos, e diferentes bichos podem ser reservatórios da bactéria.
No Brasil, especialmente em áreas urbanas, os principais hospedeiros são os ratos que vivem em bueiros. No entanto, especialmente durante desastres, até mesmo animais de estimação podem ser contaminados.
Durante a crise no RS, veterinários esperavam que isso ocorresse, mas poucos casos foram observados — do contrário, o número de infecções em humanos poderia ser ainda maior.
Os animais, vale destacar, não nascem com a bactéria. Assim como ocorre com os humanos, a infecção depende fortemente de fatores ambientais e os determinantes climáticos, especialmente pluviométricos, aumentam o risco.
Para se ter uma ideia, em um estudo publicado em 2011 na revista científica International Journal of Biometeorology, a meteorologista e médica Micheline Coelho, pesquisadora colaboradora do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental (Lapae) da USP, analisou o impacto de fatores climáticos nas internações pela doença em São Paulo. Os resultados apontam que, a cada 20 mm de chuva, as internações por leptospirose aumentaram em média 15,6%, chegando a uma alta acumulada de até 142% com 140 mm de precipitação.
Os especialistas destacam que a doença também é influenciada por fatores socioeconômicos, afetando desproporcionalmente populações empobrecidas que vivem em condições urbanas precárias e enfrentam falta de saneamento básico e pior gestão de resíduos. Pequenos agricultores, nas zonas rurais, também são desproporcionalmente afetados.
Eventos extremos, como enchentes e inundações, porém, têm a capacidade de fazer o risco extrapolar esses grupos. “As águas podem atingir a todos em caso de enchentes. No final, todos ficam vulneráveis”, afirma Michelini.
Embora essas águas correntes sejam importantes para a contaminação, Alexandre Vargas Schwarzbold, consultor da SGI e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), aponta que são as águas paradas, o solo úmido, a lama e o lixo acumulado que mais preocupam. “É comum vermos casos de leptospirose emergirem nos pós-enchentes imediatos, quando as pessoas voltam para casa.”
Com isso, o período de surto da doença pode se estender mesmo após as águas baixarem. “Uma vez no solo, essa bactéria pode ficar viável por dias, semanas ou meses, a depender das condições dele. O barro parece ser o grande fator de perpetuação”, fala o infectologista Pasqualotto.
De acordo com o patologista Paulo Saldiva, referência internacional no estudo do impacto das mudanças climáticas na saúde humana, o efeito mais importante parece ocorrer de duas a três semanas após a enchente, mas pode existir um risco residual até seis meses depois.
Os dados de 2024 mostram que os registros de leptospirose no RS ficaram acima da média registrada em anos anteriores até agosto, três meses após as enchentes.
Mesmo pessoas que não tiveram as casas invadidas pelas águas foram afetadas pela leptospirose. É o caso da atleta Luisa Giampaoli, de Pelotas. A corredora morreu em julho do ano passado, aos 29 anos, em decorrência da doença. “Não sabemos (como ela pegou)“, fala o marido, Eduardo Schmit. “Moramos numa parte mais alta (da cidade).”
Mesmo um ano depois da enchente histórica, os moradores ainda vivem com medo da doença. “Nunca tínhamos visto ratos, nos 16 anos que moramos aqui (nesta casa), antes da enchente”, diz Maria Cláudia Lisboa, de 54 anos, moradora de Guaíba. Ela, a filha e o marido tiveram leptospirose em dezembro.
Tempestade perfeita
Em 2010, cientistas alertaram na Transactions of The Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene: com as mudanças climáticas globais, eventos climáticos extremos, como ciclones e enchentes, devem ocorrer com frequência e intensidade cada vez maiores, o que pode resultar em um aumento na incidência, bem como na magnitude dos surtos de leptospirose. O Brasil já figurava entre os países mais vulneráveis.
Quinze anos depois, enchentes como as de 2023 e 2024 no Rio Grande do Sul ajudam a remover o “pode” daquela previsão. E o cenário urbano brasileiro só amplia o risco. Segundo o Mapbiomas, as cidades do País crescem mais justamente nas áreas propensas a desastres climáticos. Desde 1991, a ocorrência desses eventos em regiões urbanizadas aumentou cinco vezes.
A mudança no padrão das chuvas também tem chamado a atenção, elevando ainda mais o risco de surtos. “Elas ficam mais concentradas em períodos curtos”, afirma Saldiva. Além da intensidade, a própria geografia das chuvas está mudando. “Como o centro da cidade é mais quente do que na periferia, o ar quente não sobe, e o ar mais frio entra com mais velocidade. Em vez de chover nas cabeceiras dos rios ou nas áreas verdes, está começando a chover no centro.”
Com isso, cai por terra a esperança que havia entre os médicos nos anos 1960 de que, com antibióticos, vacinas e saneamento básico, doenças infecciosas como a leptospirose fossem se tornar problemas de locais remotos. “Elas passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades”, avalia Saldiva. “Mesmo porque, se você for ver as periferias de São Paulo e mesmo de Porto Alegre, do ponto de vista de saneamento, temos pessoas vivendo do mesmo jeito que se vivia na Idade Média.”
O que precisamos fazer?
Como as vacinas contra leptospirose para humanos ainda são raras e pouco utilizadas — países como China, Japão e França têm imunizantes contra alguns sorotipos da bactéria e aplicam-nos em grupos de risco — e as mudanças climáticas parecem nos levar a um risco contínuo de infecção, pode parecer que estamos de mãos atadas frente à doença. Mas isso não é verdade. Especialistas listam o que podemos fazer:
- Planos abrangentes para manejar casos em situações de desastres, com previsão de estoques estratégicos de medicamentos e testes, para responder com agilidade;
- Descentralização da execução de testes e investimentos para testagem em tempo real. “(Do jeito que está) Funciona para fins epidemiológicos, para anotar no caderno e revisar quantos casos houve. Temos de ter um sistema que dá diagnóstico em tempo real”, avalia Pasqualotto;
- Limpeza urbana e universalização do saneamento básico;
- Conscientização sobre a necessidade de uso e distribuição de equipamentos de proteção, como botas e luvas, tanto durante as enchentes quanto no momento de limpeza da cidade;
- Controle de pragas urbanas, como os roedores;
- Controle da população de animais nas ruas por meio da castração;
- Vacinação de animais: há vacinas disponíveis para animais e elas fazem parte da imunização de rotina dos bichos de estimação.
“Essas coisas estão interligadas, está tudo no mesmo pacote. Não tem como salvar uma sem salvar outra. Precisa ser uma decisão global”, finaliza a médica veterinária Marilise Mesquita, professora do Bacharelado em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).