Aurora Miranda Leão*

      Quando a barragem do Fundão rompeu-se, no distrito de Bento Rodrigues, no centro do município mineiro de Mariana, o calendário marcava 5 de novembro. No início da tarde, há 10 anos, o Brasil parava perplexo ante aquele que se tornou o maior desastre ambiental da história:   o rompimento da barragem da mineradora Samarco.

     Da água que enchia a cabeceira e os afluentes do Rio Doce e gestava o trabalho de tantas pessoas da comunidade do leste de Minas Gerais – farta em beleza, lazer, memória afetiva e pertencimento – não restou mais quase nada.

   A estrutura da mineradora Samarco despejou 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos, os quais avolumaram-se como lama tóxica por 660 quilômetros do Rio Doce. Nesse assustador percurso, 38 municípios foram alcançados, vidas foram ceifadas, comunidades inteiras desapareceram, devastou-se o ecossistema. E foi tanto e tão enorme a força do lamaçal que atingiu a foz do rio, no Espírito Santo, e chegou ao oceano Atlântico.

     Governador Valadares foi uma das cidades mais vitimadas e teve o abastecimento de água totalmente interrompido. Sabedor de tudo isso, um dos moradores do município, o professor e artista visual, João Marcos Mendonça, teve a benfazeja ideia de traduzir em arte sua experiência pessoal. O resultado é “Doce Amargo”, HQ de sua autoria com lançamento agendado pro dia 8 de novembro, sábado, no teatro Atiaia, no centro da cidade.

Desastre devastador

    O crime ambiental de Mariana despejou 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios, destruindo comunidades e matando os 660 km do Rio Doce, atingindo 38 munícipios e alcançando até o oceano do Espírito Santo. Uma das cidades mais impactadas foi justamente Governador Valadares, onde reside o professor João Marcos e sua família, uma das tantas que sofreu os horrores daquele tempo com água contaminada, medo, incertezas, inseguranças e pavor ante o risco potencial de novas situações semelhantes.

Doce Amargo

          A tragédia de Mariana figura em “Doce Amargo” através de cenas nas quais real e ficcional se entrelaçam: vizinhos conversam, pessoas alimentam filas em busca de água, comerciantes cobram preços abusivos e há gente vendendo galões falsificados com o líquido impróprio para consumo. Em meio ao caos, gestos de solidariedade adquirem relevo e vivências corriqueiras ganham configurações de diversos matizes, ancorados em época na qual o simples ato de beber água torna-se problema quase insolúvel.

   A HQ acompanha o primeiro ano pós-desastre da bacia do Fundão, no qual foram protagônicos o medo, a agonia, os boatos (mais rápidos que as informações oficiais) e a sensação de descaso/negligência. Com traço sensível e narrativa precisa, João Marcos desenha um testemunho gráfico que é, ao mesmo tempo, denúncia e memória.

    Autor do prefácio, o professor Hernani Santana escreve que “Doce Amargo não nasce só da mão do artista. Ele nasce do encontro, da escuta e do amor que resiste”, ressaltando a HQ como fonte de reconstrução mnemônica da tragédia, rompendo com versões oficiais.

   As cores, assinadas por Marianne Gusmão, traduzem com maestria os sentimentos assentes na narrativa. Valendo-se da lama causada pelos rejeitos de minério de ferro, a artista acompanha as variações de tons emocionais da história, reforçando a densidade dramática e o profundo impacto humano da tragédia.

     “Doce Amargo não nasce só da mão do artista. Ele nasce do encontro, da escuta e do amor que resiste”, diz o professor Hernani Santana no prefácio.

Após São Paulo e BH, João Marcos lança “Doce Amargo” em Valadares

Mestre de Passarinhos

       Nascido em Ipatinga, João Marcos Mendonça, é mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), no município de Governador Valadares. Chargista, com mais de 15 livros de quadrinhos infantis, publicados por diversas editoras, João Marcos acumula reconhecimentos importantes, como o prêmio Cátedra 10 UNESCO de Leitura (PUC-Rio). E, por sua notória paixão pelos quadrinhos, o artista hoje integra a equipe da Maurício de Sousa Produções

Veja aqui: https://www.youtube.com/watch?v=xyNegMkec9k

    Em 2024, foi um dos artistas convidados do Batman Day, promovido pela DC Comics em celebração aos 85 anos do personagem. Além de quadrinista, é exímio ilustrador e pesquisador sobre o uso das HQs na educação – tema que lhe rendeu o Troféu HQ Mix, originando diversas publicações teóricas.

João Marcos Mendonça também ministra palestras e oficinas em instituições de ensino, eventos literários e festivais de quadrinhos no Brasil e no exterior. É criador da adorável série de tirinhas “Escola de Passarinhos”, veiculada no Instagram, através da qual o cotidiano escolar é abordado com contagiante sensibilidade, fazendo nascer uma startup de mídia de mesmo nome.

“Me interessou contar essa história sob a perspectiva humanizada, do ponto de vista ordinário. De pessoas que tiveram suas rotinas impactadas em situações absolutamente comuns, como tomar água ou um banho. E também, principalmente, para que essa história não fosse esquecida – pois isso também acontece com o passar dos anos. Relembrar esta tragédia agora que ela completa 10 anos é um passo importante nesse sentido”, afirma o autor.

Só mesmo alguém com a alma de Passarinho para verter em arte e criatividade página tão infeliz da nossa história, como o desastre de Mariana, e com a sensibilidade de seus traços criar memória, prospectar reflexão e permitir ao leitor ultrapassar as páginas da HQ para criar imaginários, ratificar necessidade urgente do respeito ao meio-ambiente e ainda gerar empatia.

   E isso é o professor João Marcos, o apanhador de passarinhos no campo de centeio das cercanias do Vale do Rio Doce.

Saiba mais: https://g1.globo.com/es/espirito-santo/norte-noroeste-es/noticia/2025/11/05/rio-doce-ainda-e-paciente-cronico-dez-anos-depois-do-desastre-de-mariana.ghtml

*Aurora Miranda Leão é jornalista e doutora em Comunicação.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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