A qualidade da água destinada ao consumo humano continua a ser um dos maiores desafios em Cabo Verde, particularmente na cidade da Praia e no município de São Domingos, na ilha de Santiago. Um estudo recente, publicado na Revista Cabo-verdiana de Investigação em Saúde, do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP), revelou que a maioria das amostras de água analisadas nessas duas localidades não cumpre os padrões nacionais de potabilidade definidos na legislação.
A investigação, publicada no número inaugural da Revista Cabo-verdiana de Investigação em Saúde, analisou 80 amostras de água recolhidas em diferentes pontos da Praia e de São Domingos, avaliando a presença de coliformes totais e da bactéria Escherichia coli, ambos indicadores de contaminação fecal. Os resultados foram preocupantes: 83,8% das amostras apresentavam coliformes totais e 48,8% estavam contaminadas com E. coli, revelando uma situação de risco para a saúde pública.
A comparação entre os dois municípios mostra realidades distintas. Enquanto a cidade da Praia apresentou índices de contaminação relativamente mais baixos — 35% das amostras com coliformes totais e 15% com E. coli —, o município de São Domingos registou taxas muito superiores, com 48,7% e 33,7%, respectivamente.
O estudo aponta factores estruturais e sociais como determinantes para essa diferença. Em São Domingos, uma parte significativa da população continua a depender de nascentes e furos para abastecimento, enquanto, na Praia, predomina a água dessalinizada distribuída pela rede pública. Além disso, a frequência de fornecimento de água em São Domingos é mais irregular, obrigando muitas famílias a recorrer ao armazenamento prolongado em recipientes domésticos, prática associada a um maior risco de contaminação.
Outro dado relevante é a forte associação entre o tipo de recipiente utilizado e a presença de microrganismos. Barris e garrafões de plástico, amplamente usados tanto na Praia como em São Domingos, registaram os índices mais elevados de contaminação, com mais de 60% das amostras a apresentarem E. coli. Já os tanques de maior dimensão mostraram taxas de contaminação inferiores, o que evidencia a necessidade de reforçar práticas de higienização e de investir em soluções de armazenamento mais seguras.
Rede pública também apresenta riscos
O estudo alerta ainda para um aspecto particularmente preocupante: mesmo amostras recolhidas directamente da rede pública apresentaram contaminação por E. coli em 66,7% dos casos. Tal realidade pode reflectir falhas na distribuição, como reservatórios degradados ou tubagens antigas, mas também contaminações posteriores ao nível do armazenamento doméstico.
Esta constatação reforça a necessidade de monitorização contínua da qualidade da água e de campanhas educativas que promovam práticas seguras de manuseamento e higienização, sobretudo em contextos de abastecimento intermitente.
Reclamações na Praia e resposta da AdS
Nos primeiros meses de 2025, vários consumidores da cidade da Praia reportaram a chegada de água com coloração avermelhada às suas torneiras. Em resposta, a Águas de Santiago (AdS) garantiu que a água fornecida na capital é dessalinizada e submetida a controlos rigorosos de qualidade antes de ser distribuída. A empresa explicou que alterações na cor da água podem estar relacionadas com depósitos domésticos ou equipamentos como termoacumuladores e não com o processo de dessalinização.
Ainda assim, os relatos revelam uma frágil confiança dos consumidores em relação ao serviço, o que pode dificultar a aceitação de campanhas que incentivem o consumo directo da água da rede sem tratamentos adicionais.
Saúde pública em primeiro plano
Os autores do estudo sublinham que a presença de coliformes totais e E. coli em níveis tão elevados configura um risco directo de surtos de doenças diarreicas, hepatite A, cólera e febre tifóide, entre outras. Estas doenças continuam a ser responsáveis por elevadas taxas de internamento, sobretudo em crianças com menos de cinco anos.
Diante deste cenário, os investigadores recomendam não apenas o reforço da vigilância laboratorial, mas também a adopção de tratamentos domésticos, como a fervura da água ou a utilização de filtros e desinfectantes.
Investimentos
Em Janeiro de 2025, o Governo resolveu uma avaria em duas dessalinizadoras da Praia, restabelecendo a produção diária de mais de 15 mil m³ de água, suficiente para estabilizar o abastecimento da capital. Além disso, aprovou um investimento de 583 mil contos para reforçar a AdS e a Electra na manutenção, produção e distribuição de água em Santiago, incluindo melhorias nos sistemas de esgoto.
Em São Domingos, entrou em funcionamento, em 2024, uma dessalinizadora capaz de produzir 883.300 m³ de água por ano e beneficiar 1.200 agricultores. No mesmo ano, iniciou-se a construção de outra unidade em Achada Baleia, financiada pela Hungria em 35 milhões de euros, com capacidade de 2.200 m³ diários, destinada a reforçar o abastecimento agrícola e doméstico.
Apesar destes avanços, persistem riscos: a qualidade da água consumida continua a apresentar falhas microbiológicas, agravadas pelo armazenamento inadequado, num país que enfrenta escassez estrutural de recursos hídricos e forte dependência da dessalinização.
Enquanto as autoridades públicas avançam com investimentos em infra-estruturas, o sucesso no combate à contaminação dependerá igualmente da mudança de práticas ao nível das famílias. O uso continuado de barris e garrafões sem higienização adequada representa um risco.
O estudo agora divulgado funciona como um alerta: água em quantidade não é suficiente, é a qualidade que garante saúde e bem-estar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1240 de 3 de Setembro de 2025.