ANÁLISE
Em julho de 2020, o Observatório da Mineração revelou com exclusividade que documentos analisados levantavam a suspeita de que Vale e BHP, donas da Samarco e responsáveis pelo maior desastre ambiental do Brasil, o rompimento da barragem de Mariana, estavam usando a Fundação Renova, entidade criada no acordo de reparação e controlada pelas mineradoras, para tentar reembolsar bilhões do que foram obrigadas a gastar para amenizar o dano gigantesco causado.
Havia indícios, escrevi, de que as doações da Vale e da BHP à Renova estavam sendo registradas como dívida contraída pela Samarco, que se comprometia a devolver o dinheiro às suas controladoras. É uma manobra vedada pela Receita Federal.
Foi uma longa, complicada e extremamente técnica apuração, com detalhes descritos na matéria, disponível no link acima. Na época, o caso ficou nas mãos do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Nada foi feito.
Em junho de 2021, novos fatos confirmaram as suspeitas. Credores da Samarco, que havia entrado em recuperação judicial, devendo mais de R$ 50 bilhões, investigaram os documentos e levantaram a possibilidade de que manobras de Vale e BHP podiam representar um compromisso de reembolso da Samarco para as controladoras de R$ 24 bilhões.
É muito dinheiro, é um debate complexo e mais de cinco anos se passaram. Muita coisa ficou por isso mesmo, a Renova foi extinta, um grande acordo para tentar “encerrar” o longo e problemático – para ser generoso – processo de reparação por Mariana foi assinado um ano atrás, em outubro de 2024. Logo na sequência, Samarco, Vale e BHP foram absolvidas pela Justiça Federal pela responsabilidade criminal no rompimento que matou 19 pessoas.
No entanto, essa semana, uma multa recebida pelas empresas indica que a tentativa de reaver parte do dinheiro gasto em Mariana assumiu possivelmente mais de uma forma. A mídia noticiou: Vale e Samarco foram multadas em R$ 1,92 bilhão por tentar descontar do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) os valores gastos com reparações e multas ligadas ao rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em 2015. O valor foi definido pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), escreveu o UOL.
Durante a sustentação no julgamento, o procurador da PGFN Vinícius Campos destacou que, se a decisão favorecesse a mineradora, desvirtuaria o sistema punitivo e administrativo do direito tributário. Na sua opinião, estaria sendo criado “um sistema contraditório, em que o Estado, ao mesmo tempo em que aplica uma penalidade, aceita que ela use isso como benefício fiscal”, sustentou Vinícius. O procurador completou que, dessa forma, a “União daria estímulo à prática de ilícito”, detalhou a Agência Brasil.
As despesas deduzidas pelas empresas incluíam valores fixados em acordos judiciais com o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e municípios atingidos, além de multas ambientais. A decisão ainda cabe recurso no Carf.
A Samarco informou que discutirá o assunto nos autos dos processos. Disse também que a empresa cumpre rigorosamente o Novo Acordo do Rio Doce e reafirmou o seu compromisso com a reparação. A Vale afirmou que “considera que a dedução de imposto de renda é aplicável, uma vez que os pagamentos de indenizações e compensações relacionados ao rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, refletem uma despesa obrigatória, decorrente da responsabilidade objetiva de reparação por parte da empresa”, pontuou o G1.
O fato não é pouca coisa e não deve ser normalizado.
O encadeamento das apurações indica que, se eventualmente o plano A não foi adiante, ou seja, as manobras reveladas pelo Observatório da Mineração em 2020 – que no entanto ficaram sem a investigação devida pelas autoridades – Samarco e Vale partiram para um possível plano B e tentaram deduzir em impostos bilhões que foram obrigadas a pagar por serem responsáveis, repito, pelo maior desastre socioambiental do Brasil.
Isso representa talvez um novo ápice do cinismo do grande capital, estratégia que esteve presente desde o minuto zero do rompimento.
Não é que a Vale tenha do que reclamar. A empresa lucrou centenas de bilhões de reais nos últimos anos, apesar de dever dezenas de bilhões para a União, estados e municípios e usar de todos os meios possíveis para não pagar.
Além disso, grandes mineradoras como a Vale já gozam de inúmeros privilégios fiscais, subsídios estatais, isenções fiscais, não pagam o montante devido em CFEM – royalties da mineração – não pagam imposto de exportação e estudos, inclusive coordenados por nós, apontam que bilhões em impostos na cadeia do minério de ferro não são pagos anualmente.
Mesmo esse contexto de paraíso fiscal e acúmulo de privilégios multibilionários não parece ser o suficiente.
Era preciso tentar conseguir mais uns bilhões de desconto às custas de centenas de milhares de pessoas atingidas e de ecossistemas riquíssimos e únicos que passam pelas centenas de quilômetros do Rio Doce e seus afluentes até a biodiversidade marinha preciosa do Atlântico Sul do Espírito Santo até Abrolhos na Bahia. Tudo contaminado pela lama tóxica da Vale, Samarco e BHP.
Mas não era – nunca é e nunca será – suficiente.
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