O documentário “Katrina: Depois da Tempestade” é mais uma obra prima documental de Spike Lee, cineasta da linha de frente mundial, um dos mais contundentes na defesa da cultura e da vida dos negros americanos. Com ele não tem subterfúgios. As denúncias sangram, machucam e mostram que o horror aos pretos ainda persiste em doses gigantescas nos Estados UnidoA tempestade de 2025, que completa 20 anos nestes meses de agosto e setembro, poderia ser muito bem definida como a tempestade racista. Atingiu com mais virulência bairros negros, menos protegidos e com sistemas de barragens mais frágeis. O furacão matou na cidade de Nova Orleans, epicentro da catástrofe, e no estado de Louisiana, além de estados próximos como Flórida, Geórgia, Alabama e Ohio, mais de 1850 pessoas e deixou milhares de feridos e desabrigados.
Spike Lee, responsável pelo documentário “Os Diques se Romperam” de 2006, voltou agora com sua equipe para lá para contar as histórias dos sobreviventes do Katrina. De cara, e ao longo dos três capítulos do documentário da Netflix (cerca de 60 minutos cada um) se vê a discriminação na distribuição de verbas de 2 bilhões de dólares para a reconstrução da cidade. Os negros, que constituem de 70 a 80% da população de 384 mil pessoas de Nova Orleans, receberam recursos reduzidos (perto de 100%) em relação aos brancos.
O cineasta e produtor e os seus repórteres ouviram as histórias dos moradores que precisaram reerguer suas vidas, sentem os impactos, e revivem as memórias até hoje. Também mostra as desigualdades que persistem e a resiliência da comunidade negra, usando imagens de arquivo e testemunhos de sobreviventes e socorristas.
A série explora as lições que podem ser tiradas da catástrofe, sendo considerada uma obra essencial para a compreensão de temas como desastre natural, racismo e política. Toda a área metropolitana da cidade passa de 1,2 milhão de pessoas e estados vizinhos também foram seriamente afetados pelo desastre natural.
O documentário revela o estado do prefeito da capital de Louisiana e da governadora do estado confusos, perturbados, sem saber para onde ir, sem saber que ação tomar, completamente em letargia absoluta. Foi um horror. O presidente americano da época George Bush passou de avião no local, mas não teve a dignidade de tomar alguma atitude mais relevante, como a de visitar os atingidos. Bem, se fosse hoje, Donald Trump talvez fizesse pior. Mandaria acabar com a cidade para construir um resort de luxo.
Não há como não sentir um misto de revolta e desprezo pelas autoridades de todos os níveis tão logo passou o furacão. A omissão, a confusão e a desgraceira a que as pessoas foram jogadas. Aconteceu de tudo: omissão nos salvamentos, fuga em massa, abrigos superlotados, mortandade também de animais, estupros nos ginásios, saques, vandalismo. Foi um deus cos acuda de tragédias e minitragédias. Ninguém ficou de fora.
Destruição
O furacão foi uma tempestade tropical com a categoria 3 na escala de furacões de Saffir-Simpson em terra firme e categoria 5 no Oceano Atlântico, Golfo do México. Os ventos foram de 280 km/h e causaram estragos violentos em todo o Sul dos EUA. Em Nova Orleans e região ocorreu em 28 de agosto de 2005, onde mais de um milhão de pessoas foram evacuadas. Os prejuízos em Lousiana e nos demais estados foram de cerca de 100 bilhões de dólares da época. Foi a terceira tempestade mais mortífera a atingir o país americano. O furacão paralisou muito da extração de petróleo e gás natural dos Estados Unidos, uma vez que boa parte do petróleo americano é extraído no Golfo do México.
Inundação
No dia 29 de agosto, a maré de tempestade do Katrina causou danos em 53 pontos diferentes na Grande Nova Orleans, submergindo 80 por cento da cidade. Um relatório de junho de 2007 feito pela Sociedade Americana de Engenheiros Civis indicou que dois terços das inundações foram causados pelas múltiplas falhas nas barreiras da cidade, bem como aconteceu em Porto Alegre no ano passado. Não foram mencionadas as comportas que não foram fechadas. A tempestade também devastou as costas do Mississippi e do Alabama, tornando o Katrina o mais destrutivo e mais caro desastre natural na história dos Estados Unidos, e o mais mortal ciclone tropical desde o Okeechobee de 1928.
Os dados oficiais sobre o desastre indicam que a área afetada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos cobriu 233 mil quilômetros quadrados, o que corresponde a cerca de 95% da área do Reino Unido, que é de 245 mil km quilômetros quadrados. O furacão deixou cerca de três milhões de pessoas sem eletricidade.
Como consequência da tempestade, muitos problemas apareceram. Alguns dos diques que protegiam Nova Orleans não conseguiram conter as águas do Lago Pontchartrain. Cerca de 200 mil casas ficaram debaixo de água, sendo que foram necessárias várias semanas para que a água pudesse ser totalmente bombeada para fora da cidade.
O documentário mostra os grandes estragos do furacão; entre eles, danos no sistema de abastecimento sanitário e de esgoto de Nova Orleans. Isto fez com que muitas pessoas só pudessem retornar no verão de 2006. A maioria dos habitantes foi evacuada para outras cidades do estado de Louisiana, Texas e Missouri, ou transferidos para regiões distantes como Washington, Ontário e Illinois, segundo o Wikipedia.
Os efeitos econômicos da tempestade foram de longo alcance. O Governo Bush solicitou, muito depois, perto de 100 bilhões de dólares para reparos e reconstrução da região, o que não foi suficiente para sanar os prejuízos para a economia, causados pela interrupção potencial do fornecimento de petróleo, a destruição de infraestrutura da rodovia da Costa do Golfo e as exportações de commodities, como grãos.
A tempestade Katrina foi responsável pela migração de mais de um milhão de pessoas na costa central do Golfo e em outros lugares nos Estados Unidos, o que se tornou a maior diáspora da história americana. Algumas companhias de seguros deixaram de pagar os proprietários na área por causa dos altos custos.
Cidade divertida
Nova Orleans sempre foi uma cidade turística, divertida, de muita música (jazz) e alegria. A capital do estado possui vários cognomes, que descrevem suas diversas características. Entre elas, as mais conhecidas são The Crescent City (descrevendo seu formato ao longo do Rio Mississippi) e The City that Care Forgot (associada com a natureza amistosa dos habitantes da cidade). O lema de Nova Orleans é Laissez les bons temps rouler (“Deixe os bons tempos rolarem”).
É uma cidade conhecida pelo seu legado multicultural — especialmente pelas influências culturais francesas, espanholas e afro-americanas. A cultura “Cajun” provém diretamente dos franceses, brancos, católicos, que colonizaram a Nova Escócia, no Canadá, então Acádia (daí apocopado para “Cajun”), no século XVII e que migraram para a Louisiana, vindo a se estabelecer em Nova Orleans no século XVIII, a partir de 1755, devido a perseguições religiosas e políticas, em decorrência da guerra entre Inglaterra e França.
Já o termo “Créole” se refere aos imigrantes brancos e negros que vieram para a Luisiana, das colônias francesas nas Antilhas, a Martinica e o Haiti, que chegaram no século XVIII e aos índios e brancos nativos que sofreram sua influência.
Na culinária estão pontos marcantes dessa influência, como o uso de condimentos fortes, frutos do mar e a incorporação de elementos usados pelos colonizadores espanhóis e franceses, como o presunto. A culinária créole legou para o mundo a jambalaya, prato à base de camarão, linguiça e arroz, preparado ao estilo da paella espanhola.
Por toda essa miscigenação e sincretismo, decorrentes do “Cajun” e “Créole”, Nova Orleans é comparável a Salvador e tem como característica marcante ser multirracial.
Nova Orleans foi fundada em 1718 por colonos franceses, sob o nome de La Nouvelle-Orléans. Estes colonos eram liderados por Jean-Baptiste Le Moyne de Bienville. O local foi escolhido para a fundação de um novo assentamento por causa de duas características: seu inusitado relevo relativamente alto em uma região de muita baixa altitude, vulnerável às enchentes e inundações, e por estar próximo a um posto comercial francês (onde comerciantes faziam diversas trocas comerciais com os nativos) e de uma estrada indígena. Nova Orleans tornou-se a capital da província colonial francesa de Louisiana (parte da Nova França) em 1722, substituindo Biloxi.
O documentário, cujo título original é “Katrina: Come Hell and High Water”, é uma grande aula para quem vive em áreas passíveis de enchentes e de grandes tempestades – como nós aqui no RS. A sua abordagem emocional, o carinho dos entrevistados com a sua cidade, revela realmente que Nova Orleans é amada e diferenciada de grandes metrópoles dos EUA onde impera a ignorância pelo outro. A produção alcançou alta visibilidade na Netflix, entrando no Top 10 em vários países. Sua abordagem visual e musical captura a essência de Nova Orleans, além de provocar reflexões sobre justiça e resiliência. É um documentário poderoso que honra as vítimas de Katrina.